Uma das novidades em "O Devorador", novo livro da Edições Sesc, em comparação com outros livros sobre Zé Celso, é a atenção dada a momentos ainda nebulosos de sua história, como seu exílio no estrangeiro.

A coletânea reúne dezenas de textos, entre ensaios teóricos, excertos assinados pelo próprio encenador e depoimentos de quem esteve ao seu lado em diferentes momentos de sua trajetória. Além de seu viúvo Marcelo Drummond e de Claudio Leal - colaborador da Folha de S.Paulo e organizador do livro - , aparecem no elenco reunido Caetano Veloso, Renato Borghi, Marieta Severo, Tom Zé, Augusto de Campos, Jorge Mautner, Gerald Thomas e Gilberto Gil.

O diretor de cinema e dos palcos Celso Luccas fala, em um dos textos da seleção, sobre os filmes rodados com Zé Celso em Portugal e Moçambique, episódio entre os menos conhecidos da vida do encenador. Os dois haviam deixado o Brasil em 1974, após serem presos e torturados pelo Dops, a polícia política da ditadura militar, e foram parar em Lisboa logo após a Revolução dos Cravos, que derrubou o então regime autoritário mais longo da Europa.


A dupla dirigiu "O Parto", curta-metragem de 1975, retratando a vida lisbonense no primeiro ano após a libertação do país. Depois, financiados por revolucionários portugueses, de acordo com a história de Luccas, os dois foram para Moçambique acompanhar os movimentos que conquistaram a independência da nação em 25 de junho, retratados em outro pequeno filme, "25".

No estrangeiro, Zé Celso teria conhecido de verdade a revolução que sempre pregou, segundo acredita Leal. "Ele sempre falava de revolução teatral, do comportamento, mas, quando ele vai para Portugal, tem sua primeira experiência realista de revolução. Lá ele teve uma interlocução forte com os militares da Revolução dos Cravos, algo impensável com os brasileiros", diz.


Leal diz ter sido procurado pela Edições Sesc depois da morte de Zé Celso em 2023, após um incêndio em seu apartamento. Em vez de uma biografia, ele optou por organizar um projeto polifônico, com diferentes olhares sobre a trajetória do diretor. "Eu quis reunir uma fortuna crítica dos principais tropicalistas que estão em atividade e tiveram proximidade com o Zé. Foi suado, mas todos eles estão aí", afirma.

Estão retratados no livro momentos de identificação e distanciamento de outros artistas em relação ao diretor —como quando Renato Borghi, por exemplo, rompeu com o Oficina após as drogas, o improviso e a nudez ganharem espaço nas montagens do grupo em detrimento de um teatro mais clássico, ancorado na dramaturgia.


"O Zé não gostava muito de autovitimização. Enfatizei para todas as pessoas presentes no livro que eu queria um olhar livre em relação a ele, sem receio de crítica", diz.
Leal diz que a organização de seu livro tem a ver com a forma como conheceu o diretor. Criado em Salvador, distante de São Paulo, ele o descobriu por meio de suas entrevistas, muito antes de poder assistir às suas peças.

"O primeiro Zé Celso que chegou para mim foi o homem que projetava seu pensamento para além das fronteiras do teatro. Era um pensador do país, da cultura, da política, eu me informava pelo lado dele como um articulador de ideias."

Organizador de livros sobre cinema, música e de literatura, como "Cine Subaé", com escritos de Caetano Veloso sobre a sétima arte, e "Cancioneiro Geral", com poemas de José Carlos Capinan, Leal enfatizou, em sua pesquisa, a relação do líder do Oficina com as outras artes além do teatro.


"O meu desejo é que o Zé Celso se expanda para também atrair o interesse de quem estuda música popular, cinema e as diferentes representações do Brasil, porque o Zé é um dos grandes intérpretes do país nas artes", afirma.

Outra ênfase da coletânea está nos pontos de virada da história do diretor. Um dos textos da antologia, do diretor teatral Ruy Cortez, chega a propor uma revisão da consideração de "O Rei da Vela" como marco inicial do papel do teatro do Oficina na renovação do teatro nacional. Para ele, a montagem de "Os Pequenos Burgueses", de Máximo Gorki, inicia este ativismo ao ajudar a introduzir no país as ideias de Constantin Stanislavski, grande ator russo que repensou a atuação nos palcos.

São destacados ainda os dois últimos grandes projetos teatrais de Zé Celso. "Os Sertões", adaptação em cinco partes do livro de Euclides da Cunha, e "A Queda do Céu", tradução para os palcos da obra de Davi Kopenawa e Bruce Albert, que estava em desenvolvimento quando o diretor morreu. Leal vê ambas como parte de um teatro de desmassacre, sacralizador de dois grupos perseguidos na história brasileira, os sertanejos e os yanomamis.

O DEVORADOR
- Preço R$ 130,00
- Autoria Claudio Leal (Org.)
- Editora Edições Sesc