Marty McFly está visivelmente incomodado com o "avanço de sinal" de uma garota, que invadiu o seu quarto à noite, após ela tê-lo atropelado e levado para casa mais cedo. a anfitriã pergunta se o nome dele é Calvin Klein (por causa da marca da cueca), sem saber que está diante de seu próprio filho. Esse é um dos aspectos do chamado "Paradoxo do Avô", uma das principais razões do sucesso de "De Volta para o Futuro", filme de Robert Zemeckis que está completando quatro décadas de seu lançamento (nos Estados Unidos, ele chegou às telas em 3 de julho de 1985), agora ostentando o rótulo de clássico moderno, exibido incansavelmente em sessões da tarde e até hoje um campeão de audiência em TVs abertas e fechadas e no streaming.

O Paradoxo do Avô faz parte de um dos sub-gêneros mais utilizados da ficção-científica: a viagem no tempo. Ao acelerar um DeLorean transformado em máquina temporal, Marty vai parar em 1955, encontrando seus pais ainda jovens, antes de virarem namorados, mas, como evidenciado na cena acima, ele acaba interferindo nos acontecimentos  e alterando o futuro, incluindo o próprio. "Na maior parte das obras sobre viagem no tempo – literatura, cinema, tevê, quadrinhos – os paradoxos são tratados de maneira dramática ou trágica. O grande acerto em 'De Volta para o Futuro' foi evitar essas chaves mais pessimistas e investir no humor, na irreverência", afirma Luiz Bras, escritor de ficção futurista e autor de "Curta-Circuito Camicase".

"Marty McFly tendo que se esquivar das investidas amorosas da própria mãe ainda adolescente é uma das melhores situações do filme. Melhor até do que a cena do jovem protagonista tocando 'Johnny B. Goode' no baile da escola", registra Bras, que viu o filme protagonizado por Michael J. Fox nas salas de  cinema e lembra muito bem o impacto que ele teve na época. "Quando um sucesso cultural surge, é quase impossível reduzir sua força a apenas um único fator ou ingrediente. 'De Volta para o Futuro' é uma convergência de acertos: roteiro, direção, casting, atuação, produção, edição, música… Mas é verdade que a representação acelerada e irreverente do famoso Paradoxo do Avô certamente contribuiu bastante para o sucesso do filme", analisa.

O escritor destaca que a ficção científica é formada por dezenas de ramos - como space opera, cyberpunk, robôs e androides, invasão alienígena, distopias, afrofuturismo, pós-apocalipse, entre outros - e que o segmento da viagem no tempo é um dos mais populares na literatura e no cinema. "Na vida real, a ciência nega qualquer possibilidade de viagem no tempo. As leis físicas do nosso universo não permitem. Sorte nossa que a literatura, os quadrinhos e o cinema jamais ficam presos a regras e leis de qualquer natureza", salienta. Bras explica que as histórias de viagens no tempo são variações mais ou menos inventivas de três obras fundadoras - os romances “A Máquina do Tempo” de H.G. Wells, e “O Fim da Eternidade” de Isaac Asimov, e o conto “All You Zombies” de Robert A. Heinlein. 

Em "A Máquina do Tempo", lembra, temos um indivíduo inaugurando as viagens no tempo por meio não da magia, mas da ciência e da tecnologia. Em "O Fim da Eternidade", temos toda uma corporação totalitária administrando as viagens no tempo. E no conto de Heinlein há "o Paradoxo do Avô levado às últimas consequências: um indivíduo que é pai e mãe de si mesmo". "O que nós aprendemos com essas obras é que viajar para o passado exige paciência e autocontrole, do contrário a linha do tempo será alterada, provocando mudanças drásticas no presente e no futuro. Nos divertimos assistindo a Marty McFly errando e tentando corrigir seus erros, a fim de impedir sua inexistência, seu próprio desaparecimento da realidade".

Roberto Causo, também escritor de ficção científica, à frente do site especializado "Universo Galaxis", justifica o grande sucesso do filme com a sua relação com o presente. "Parte da força da série de filmes 'De Volta para o Futuro' vem do futurismo baseado na extrapolação de tendências atuais levadas ao exagero cômico. Os produtos apresentados e sua publicidade remetem àquela tradição de empreendedorismo de 'invenções revolucionárias' muito próprio da cultura americana. Ao mesmo tempo, isso vem lastreado por uma deliciosa iconografia cinematográfica saudosista da ficção científica dos anos 1950 e 60", pondera. Para ele, investigar o passado e especular sobre o futuro lançam luz sobre a moralidade, os costumes e suas mudanças. 

"O recente perfil genético do povo brasileiro evidenciou que chegamos ao presente a partir do abuso de gerações de mulheres nativas ou escravizadas, o que deveria nos fazer repensar muita coisa. Na ficção científica, questionamentos acerca dos caminhos da nossa condição atual e capacidade de protagonismo estão concentrados na figura do paradoxo temporal. O romance de viagem no tempo 'Kindred', da escritora afro-americana Octavia E. Butler, combina esses questionamentos. O jovem herói de 'De Volta para o Futuro' precisa garantir que o seu surgimento no passado, despertando o interesse erótico da garota que viria a ser sua mãe, não a impeça de ficar com o seu pai. Com isso, tem que refazer a imagem deles para além dos papéis familiares", reflete Causo.

A construção da relação entre Marty e Doc Brown (vivido por Christopher Lloyd), o inventor que faz do DeLorean uma máquina do tempo, a partir de plutônio roubado de terroristas, é outra questão apontada por Causo. "A patetice do jovem Marty McFly se combina com a excentricidade do cientista Doc Brown. O bacana da solução do filme está no afeto intergeracional entre eles, algo difícil em termos governamentais ou empresariais', radiografa. Ele também comenta sobre o desenvolvimento do protagonista, a partir de ações que acontecem no passado, em resposta às ações de seus parentes, característica perceptível também nas continuações lançadas em 1989 e 1990, que também têm Marty McFly e Doc Brown como personagens centrais.

"Na ficção popular, os heróis tendem a ser aquilo que o enredo precisa deles, e muitas vezes a caracterização surge do seu contato com outros personagens. No filme, a necessidade de reorganizar os fatos da família de McFly (que a mãe era uma adolescente interessada em sexo, que o pai era um nerd que queria escrever ficção científica) fica em primeiro plano. Como adolescente, McFly tem pouca experiência a levar com ele nas aventuras, daí uma das principais pedras de toque da trama ser o almanaque de esportes do futuro, repositório externo de conhecimento, que ele carrega na esperança de enriquecer com apostas. É claro, McFly não sabe nada de ciência, de modo que o conhecimento especulativo de Doc Brown pode ser expresso diretamente a ele, e ao espectador'", observa.

Causo afirma que a viagem no tempo ainda é uma impossibilidade para objetos complexos como automóveis ou pessoas, mas pesquisas recentes sugerem fatos surpreendentes no plano quântico (das partículas atômicas e subatômicas), como a hipótese do “tempo negativo”, resultante dos experimentos de Daniela Angulo, da Universidade de Toronto, com fótons; a ideia matemática da “retrocausalidade”; e ainda, a “interpretação transacional” de John G. Cramer, que admite um tipo de retrocausalidade quântica na qual o Prêmio Nobel de Física Sir Roger Penrose parece acreditar. "Difícil dizer, porém, a probabilidade de McFly deixar de existir se ele não virar de fato o cupido dos seus pais voltaria no tempo para apagar gradualmente a sua imagem da foto da família".

Luiz Bras não acredita que a função principal da ficção científica seja prever o futuro e as tecnologias que virão. "Sua função principal é a mesma de qualquer arte: nos envolver poeticamente. Nos transportar para outras realidades. Expressar o drama humano. Antes de ser 'científica', ela é 'ficção', imaginação com valor estético. Assim, a principal teoria científica da trilogia, a viagem no tempo, é pura fantasia. As leis físicas do universo impedem esse tipo de viagem. O mesmo vale para outras coisas fascinantes que vemos na ficção científica: miniaturização de pessoas, naves que viajam mais rápido que a luz, teletransporte, telecomunicação instantânea entre pontos distantes da galáxia, sabres de luz, fontes de energia infinita... Parte do prazer da ficção científica reside justamente na subversão das leis da física".

Para Bras, a trilogia está ancorada no zeitgeist dos anos 80. "A potência máxima de qualquer filme acontece no dia, na semana, no mês, no ano de sua estreia. Qualquer obra-prima cinematográfica vai perdendo um pouco do brilho e da força com o passar dos anos, das décadas. No campo da ficção científica, cada nova obra-prima empurra todo o gênero para outro nível. Se quiser ser relevante atualmente, um longa sobre viagem no tempo precisará assimilar 'O predestinado', 'Tenet', “Interestelar', 'Rick e Morty', 'Triângulo do Medo', 'A chegada', 'Feitiço do Tempo', 'No limite do Amanhã', as temporadas mais recentes de 'Doctor Who' e dezenas de outras obras bem-realizadas. E note que eu nem comecei a mencionar os melhores romances, contos e quadrinhos publicados nas últimas décadas…".