Ao final da página, o poeta anotou os seguintes versos, que serviriam de indicações para o músico: “Samba-canção. Dor de cotovelo. Cartola. Fossa”. O samba “Ouvi Dolores” demorou cerca de 15 anos para ficar pronto.
Em 2009, quando o jornalista Raphael Vidigal Aroeira entregou a letra para André Figueiredo, a melodia rapidamente foi criada ao violão. Apesar disso, o tempo para maturação se prolongou além das expectativas iniciais.
Compositor da melodia, André Figueiredo estreia soltando a voz, além de empunhar o violão, e realiza um delicado dueto com a cantora Luisa Doné, em uma participação mais do que especial. A produção musical ficou a cargo de Ariston Espagnolo.
O título de “Ouvi Dolores” faz referência direta a Dolores Duran (1930-1959), pioneira compositora e ícone do samba-canção que teve a vida interrompida precocemente, aos 29 anos, após sofrer uma parada cardíaca.
A artista se consagrou graças a clássicos da música popular brasileira, como “A Noite do Meu Bem”, “Por Causa de Você”, “Castigo”, “Fim de Caso”, entre outras, embebidas numa espécie de lirismo melancólico que comparece nessa canção-homenagem de Figueiredo e Vidigal.
Mas, apesar dessa característica explícita, o encontro da artista com a composição em destaque acontece de relance. Há a narrativa de um fim de caso, tema predileto da obra de Dolores Duran, na perspectiva de quem se desiludiu com o amor, em um tempo indefinido onde a lembrança é reacendida através de uma música que toca no rádio, promovendo esse diálogo em que os acontecimentos se sobrepõem para o eu lírico. Ou seja, passado e presente confluem pondo em dúvida a duração da promessa.
Encontro
O clima noturno, um tanto sombrio, que atravessa a canção, não é por acaso. Ao final dos versos, o poeta anota o horário da inspiração: “às 4h30 da manhã”. Com letra de Raphael Vidigal Aroeira e melodia de André Figueiredo, o samba “Lupicínio”, nascido, inclusive, na mesma época, é uma espécie de irmão gêmeo de “Ouvi Dolores”. Os próprios nomes indicam semelhanças.
Dessa vez, o personagem da música brasileira que batiza o samba-canção é, justamente, Lupicínio Rodrigues, conhecido tanto pela boemia quanto por ter criado a “dor de cotovelo”, devido a seu hábito de apoiar-se nos balcões dos bares de Porto Alegre para lamuriar suas desilusões amorosas, colhendo, tanto da observação externa quanto da reflexão interiorizada, conteúdos para clássicos da canção popular, com os sugestivos nomes de “Vingança”, “Nunca”, “Nervos de Aço”, “Loucura”, dentre outros.
Na parceria de Vidigal e Figueiredo, o compositor amargurado é citado nominalmente, a partir de versos que rimam sua alcunha com “martírio” e “delírio”, duas condições do eu lírico que atravessam a narrativa e revelam a afetação de seu estado.
No entanto, embora parta de um tom confessional e desalentado, com instantes carnavalescos sobre “lança-perfume” e “vexame”, a reflexão existencial logo assume seu papel e toma a cena no delicado refrão, permanecendo sob a memória nostálgica.
A questão da perda, do desamparo, da finitude, é fundamental em “Lupicínio”. Para adensar essa percepção, a cantora Luisa Doné participa com vocalises de aura fantasmagórica no dueto que realiza com André Figueiredo, condutor da interpretação.
A produção de Ariston Espagnolo procura captar, também com minimalismo, o desencontro entre idealização e realidade, passado e presente, expectativa e condição que determina a relação estabelecida pelas personagens ao longo de toda a narrativa.