A ironia de um destino trágico leva o protagonista à loucura. Vivendo de apontar lápis para os poucos nobres que sabem escrever, ele sofre de um amor não correspondido pela filha do chefe. “É uma peça extremamente política, que fala das diferenças de classe que vivemos hoje. É tudo muito atual para um país com um analfabetismo gigantesco que existe justamente para manipular as pessoas, e ainda fala sobre saúde mental e a solidão afetiva que dialoga diretamente com as relações fugazes do nosso mundo contemporâneo, em que nada mais dura. O personagem é um sujeito romântico que não se adapta, são muitas camadas envolvidas na peça”, delineia Milhem Cortaz, que retorna ao teatro após um hiato de doze anos para estrear seu primeiro monólogo.

“Diário de Um Louco”, em cartaz desta quinta (17) a 4 de agosto na capital mineira, foi publicado pelo russo Nikolai Gogol (1809-1852) em 1835, na forma de conto. Para a montagem, a opção de Milhem e do diretor Bruce Gomlevsky – que já haviam trabalhado juntos em “A Volta ao Lar”, de Harold Pinter – foi manter o texto em sua integralidade. “A contundência da escrita é impressionante, e, ao mesmo tempo, o Gogol é meio vidente, ele fala dos muçulmanos, da França, com uma clareza de como funcionam os sistemas, com muita propriedade sobre a história política e os sentimentos humanos, é muito bonito”, diz Milhem, para quem a peça é também uma oportunidade de desmontar o senso comum de que “os russos sejam frios e distantes”. 

Doçura

Conhecido por interpretações intensas que o levaram a ser premiado em festivais mundo afora, Milhem recebeu de Bruce um pedido especial. “Ele queria a minha doçura, pedia que eu fosse calmo, com brilho nos olhos, para que as informações, que são muito rebuscadas, pudessem chegar com clareza ao público”, conta. A partir de ensaios com “movimentos mínimos que nasciam da necessidade, e não de uma partitura pré-determinada”, o ator descobriu, durante um mês e meio de dedicada preparação, nuances da personagem e de sua relação com o contexto político da época em seu paralelo com a atualidade, tudo “sem agressividade e pelo afeto”. “Acho que conseguimos, e isso me deu a liberdade de viajar pelo Brasil e descobrir as diferentes narrativas para cada região do nosso país”, comemora Milhem.

Encontrando uma embocadura cada vez mais popular, “no sentido de carregar as pessoas para dentro da história”, Milhem passou a investir em uma atuação “olho no olho”. “Tem uma espécie de conversa franca, um improviso que, quando as pessoas percebem, o espetáculo já começou, e isso me auxiliou a não cair de cara numa intensidade já parecida com a loucura. O grande barato do teatro é ele poder se transformar com as características da nossa sociedade. O adoecimento mental está muito em voga, é muito latente para quase todo mundo hoje, quem não passou por isso tem algum parente ou conhece a história de alguém próximo. E isso aproxima as pessoas daquele maluco que é uma metralhadora de informações, as ajuda a entender a cabeça desse homem”, assegura Milhem, em referência a seu “solitário protagonista”.

Solidão

A solidão, aliás, foi o principal desafio do ator em seu primeiro monólogo. “Eu e o Bruce tivemos momentos de grande silêncio, em que nitidamente não sabíamos para onde ir. Quanto menos gente, maior é a insegurança, porque não tem muito com quem dividir as angústias, os processos, as dúvidas”, reflete Milhem. Esse vazio também se apoderava do ator ao final do espetáculo, em que a catarse não tinha com quem ser compartilhada. “Percebi nesse solo que faço teatro para dividir as emoções, os jantares, os almoços, e também para aprender com as outras pessoas. A equipe técnica é fundamental, mas eles estão lidando com problemas diferentes, e o diretor não está sempre nas nossas viagens, então eu senti falta dos companheiros”, ressalta.

No palco, Milhem tem a companhia de alguns poucos objetos, que são remodelados pela loucura da personagem, realizando uma das premissas mais caras ao teatro, a de subverter e modificar a realidade. “Foi um jeito narrativo que descobrimos de contar a história com poucos recursos, nossa vontade era que quase não tivesse cenário para a palavra chegar com mais clareza ao público, que é a própria clareza desse homem diante de um mundo louco, em que ele transforma as coisas banais em poesia”, analisa o artista. Os objetos, a dança, o corpo e a manipulação do cenário foram o ponto de partida para compreender como contar essa história complexa e intrincada. “A ideia é a mesma da criança que transforma o chocalho em avião e a manteiga em hipopótamos”.

Filme com Fernanda Torres no horizonte

O principal medo de Milhem Cortaz ao encenar “Diário de Um Louco” era “decepcionar o Diogo Vilela”, diverte-se. Em 1998, Vilela faturou os renomados prêmios Shell, Mambembe e Sharp pela atuação no espetáculo. “Depois desencanei porque teatro é assim mesmo, todo mundo monta Shakespeare, por exemplo, e fui atrás de uma forma de trazer o espetáculo para o meu discurso. Cada vez que lia esse conto eu me apaixonava mais pela originalidade do raciocínio do autor, que teve uma influência profunda sobre Dostoievski. Amo literatura russa”, declara Milhem, para quem tal narrativa é “um prato cheio para um ator brincar”.

Finalizando as filmagens do longa “Apenas 3 Meninas”, da cineasta Susanna Lira, Milhem também está garantido no elenco de “Os Corretores”, escrito e estrelado por Fernanda Torres, catapultada a febre nacional após a indicação ao Oscar por “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles. Em seguida, parte para João Pessoa para gravar “O Grande Dia”, de um jovem diretor da cidade. Junto a tudo isso, o ator está abrindo a fundação “Pão Bom pra Todo Mundo”, a fim de doar pães e formar mão de obra para padeiros e pizzaiolos com “a galera que está no regime semiaberto e os egressos do sistema prisional”, informa Milhem, que em 2023 inaugurou uma padaria em São Paulo.

Serviço

O quê. Monólogo “Diário de Um Louco”, com Milhem Cortaz

Quando. Desta quinta (17) a 4 de agosto; de quinta a segunda, às 20h

Onde. Centro Cultural Banco do Brasil (Praça da Liberdade, 450)

Quanto. Entre R$15 (meia) e R$30 (inteira) na bilheteria do teatro ou pelo site www.ccbb.com.br/bh