A cena não poderia ser mais corriqueira. Pai e filha transportam um colchão de uma casa a outra por cinco quarteirões. A atividade não é difícil, mas também não é exatamente fácil. Embora macio, o colchão é um objeto desajeitado para ser carregado. Na cama ou no chão, serve para o descanso. Nas mãos e nos braços, vira desconforto.
Por trás de simbolismos como esses é que se constrói “Das Ding”, espetáculo que estreia neste sábado (26/7), na mostra Criações No Festival Sesi em Cena 2025. A montagem traz para os palcos parceria inédita entre Eduardo Moreira, do grupo Galpão, e a sua filha, Bárbara Luz, a Nalu, do premiado “Ainda Estou Aqui.” A direção é de Marcelo Castro e Filipe Lampejo, com texto da escritora e dramaturga argentina Paloma Vidal.
A ação cotidiana revela o que há de mais íntimo nos dois, expondo as complexidades de uma relação familiar e individual. “Das Ding” é uma expressão alemã que significa “a Coisa.” O termo foi usado pela primeira vez por Sigmund Freud e desenvolvido mais tarde por Jacques Lacan para descrever algo inominável, mas que exerce uma forte presença individual.
É algo que buscamos incessantemente, mas que nunca pode ser plenamente alcançado ou representado. Em outras palavras, é a presença de uma ausência. No espetáculo, a materialização de “a Coisa” é o colchão, elemento entre os dois personagens que se revela literal e figurativamente.
O conceito parece complexo – e realmente é. Mas a simplicidade do contexto da montagem torna a linguagem, na mesma medida, profunda e acessível.
“É uma coisa inominável, uma espécie de desejo que não se consegue realizar nem definir. Freud usou esse conceito, e Lacan o desenvolveu: esse não-lugar que nunca conseguimos acessar, mas que está presente em nossa psique. O texto trabalha muito com isso. Como a própria autora diz, é uma épica do mínimo e do cotidiano, onde as coisas mais banais fazem aflorar esse ‘Das Ding’, esse desejo que não conseguimos nomear. A peça lida com algo profundamente mínimo, cotidiano, que é a relação entre pai e filha, mas cheia de nós, lacunas e buracos. E é isso que torna o texto bonito”, observa Eduardo Moreira.
A trama acompanha dois seres profundamente marcados pela perda: o pai, viúvo, e a filha, que está prestes a se mudar para outro país.
“No texto original, essa mudança era da Argentina para o Brasil. Agora, ela sai do Brasil para morar no país vizinho. São muitas perdas e separações, e as coisas vão sendo reveladas aos poucos. São dois personagens atravessados pela dor, inclusive pela perda da própria relação entre eles, pai e filha. Essa separação, de certa forma, engendra um reencontro, que traz à tona uma série de questões difíceis de colocar em palavras e de trazer ao discurso”, aponta o ator.
“É um texto muito das entrelinhas. Pai e filha precisam carregar um colchão por cinco quarteirões, e, aos poucos, vamos entendendo como essa ação simples organiza e revela a relação entre os dois. Há uma beleza na simplicidade, porque o texto é delicado e carrega a complexidade das relações familiares: ao mesmo tempo que você ama alguém, também deseja distância; há admiração, mas também desilusão. Consegui ver tudo isso no texto, esses pilares contraditórios que, ainda assim, sustentam uma forma de se relacionar”, analisa Bárbara Luz.
Moreira e Bárbara compartilham a opinião de que, por mais que estejam em cena como personagens, é impossível não carregar a relação deles para o palco, especialmente porque atuam como pai e filha.
“A relação vai se confundindo e se tornando presente. Claro que tudo se dá no nível ficcional, mas, evidentemente, trazemos experiências da própria vida”, comenta Moreira. “Isso é algo que funciona muito bem. O fato de compartilharmos uma paixão que vai além do vínculo familiar, o teatro, e podermos exercitar isso juntos, é algo muito forte”, sintetiza Bárbara.
Espetáculo mistura cinema e teatro
Com direção cinematográfica de Hugo Haddad, “Das Ding” combina linguagem audiovisual e cênica. Eduardo Moreira e Bárbara Luz gravaram cenas com o colchão em algumas ruas de Belo Horizonte, que são projetadas ao longo da montagem.
“A ideia de trabalhar com as duas linguagens veio do Marcelo Castro e do Filipe Lampejo. Enquanto uma é mais naturalista (cinema), mais próxima da vida, a outra é mais ligada à imaginação, que surge quando se entra no território do teatro. Isso serve para representar o encontro do pai com a filha e da filha com o pai em dois planos distintos. O cinema traz uma linguagem mais cotidiana, concreta, enquanto o teatro acessa o que está fora do visível, aquilo que é do campo do inconsciente, do que não se diz”, comenta Eduardo Moreira.
Montagem era desejo antigo e envolveu videochamadas
Bárbara Luz conta que estava almoçando com Eduardo Moreira quando, por acaso, encontraram o diretor Marcelo Castro. “Ele nos falou sobre o texto e decidimos montar a peça”, relembra. Era a concretização de um sonho antigo. Aos 16 anos, o próprio Marcelo já havia proposto a ideia de um espetáculo com os dois, mas Bárbara sentia que ainda era muito jovem.
Mais tarde, ela e o pai colaboraram em uma ação virtual para o Galpão, o curta “A Primeira Perda da Minha Vida”, lançado em 2022. Mas é “Das Ding” que marca a primeira parceria dos dois no teatro profissional. “Agora, finalmente conseguimos realizar esse sonho juntos”, comemora Eduardo Moreira.
A decisão estava tomada, mas acontece que Bárbara precisava voltar para Paris, na França, onde estuda teatro, e não poderia participar dos ensaios presencialmente. A solução encontrada foi realizar as leituras por chamadas de vídeo.
“Durante o processo, os ensaios on-line ajudaram, em parte, na memorização do texto, já que tivemos pouco tempo de ensaios presenciais. Além disso, foi muito bom ter ‘reuniões marcadas’ com meu pai, porque acabou sendo também uma oportunidade para conversarmos com mais calma”, destaca Bárbara.