Reunir os pedaços de uma produção que completa cinco décadas e continua até hoje, espalhada dos periódicos mais artesanais aos corporativos e longevos a este desafio se submeteu a Z Edições, casa formada por Heinar Maracy e alguns gatos pingados, quando a editora resolveu publicar a obra completa de Laerte.
A coleção "Laerte Total", que começou a sair em 2020, chega a sua nona edição neste mês. Os volumes de um a sete compilaram todos os cartuns de "O Condomínio", primeira das séries duradouras da artista, começada em 1986. As duas últimas edições começam a organizar as tirinhas da série "Piratas do Tietê", que estreou em 1992.
Os anos 1990 marcaram a consolidação da produção comercial de Laerte. Ela começou a desenhar nos anos 1970, entre suas passagens pelos cursos de música e jornalismo da Universidade de São Paulo, ao lado de gente como Luiz Gê e Angeli.
Laerte chegou a prestar serviços para algumas revistas e jornais a partir daí, mas se dedicou principalmente à militância nos anos 1980. No fim da década, cansada da atividade política, voltou a buscar o quadrinho. "Tendo a achar que os anos 1990 foram uma fase de tentar dar certo comercialmente. Mas também não fiz grandes projetos para isso, eu meio que fui indo", afirma a cartunista.
Em conversa com a reportagem, ela descreve seu trabalho sempre como frutos de tropeços e imprevistos. A autora parece se considerar uma pessoa mais guiada por seu faro do que por qualquer estratégia. "Eu vou fazendo por instinto."
"O período em que eu começo a me considerar profissional coincide com o período em que eu começo a me achar pouco profissional. Eu estou recaindo, ficando idosa e a minha dinâmica de produção está naturalmente ficando mais lenta."
Maracy, o editor e amigo, prefere descrever a nova fase da cartunista em outros termos. "Considero essa fase mais abstrata o ápice da obra dela. O que a Laerte faz hoje, ninguém faz no mundo. Está no nível dos melhores, como o Quino."
Para ele, os anos 1990, que devem ocupar ainda por um tempo os volumes da Z Edições, são quando Laerte encontra de fato a sua linguagem. A experimentação inicial dá lugar a uma consistência maior no estilo dos desenhos.
As narrativas até os anos 2000 giram em torno de personagens recorrentes e tem verve humorística em contraste a pegada mais solta e poética da produção atual, especialmente nas tiras diárias publicadas na Folha.
"Cheguei à conclusão de que desenhar personagens é uma obrigação que me limita", explica Laerte. "Eu não tento fazer uma tira que ninguém mais fez na vida. Nos tempos atuais, em que não trabalho mais com personagem nem com roteiros claramente humorísticos, não sei bem o que me orienta."
Para além das mudanças estilísticas, mudou também a forma como circula o trabalho da artista. Hoje, para além do jornal, um público novo consome suas tiras pelas redes sociais. Laerte não subestima, mas relativiza a influência das novas tecnologias em sua criação.
"Só o fato de eu abrir o Twitter e olhar as mensagens que as pessoas me escrevem já é um impacto bastante grande", diz. "Ao mesmo tempo, o que eu faço não depende muito de algum resultado que eu queira atingir."
Já a inteligência artificial, que invade todas as artes e o quadrinho não é exceção veio para ficar, em sua leitura. "É um pouco assustador, é um pouco maravilhoso, é um pouco de tudo. Agora, não dá para voltar para dentro do tubo de pasta de dentes. Já saiu."
Maracy é amigo de longa data de Laerte. Seu pai conheceu a quadrinista quando ela trabalhava para a Oboré, cooperativa de jornalistas que colabora com movimentos sociais. Ele era dirigente sindical e chegou a ser padrinho de um dos casamentos da cartunista.
O filho editor decidiu criar sua própria empresa como alternativa aos grupos tradicionais. Lá a produção é sob demanda, os autores têm direito a 20% de todos os lucros e o enfoque está em prestar serviços a artistas em um modelo mais próximo ao da autopublicação. Nos últimos anos, a empresa triplicou seu número de funcionários agora, são três.
"Fizemos tudo ao contrário: olhamos para o que não funcionava mais no modelo clássico de editoras e decidimos seguir outro caminho", afirma. "Estou indo na contramão porque acredito que esse é o caminho certo."
O modelo enxuto é importante para viabilizar preços mais acessíveis do que a média do mercado editorial. Cada edição de "Laerte Total" custa hoje R$ 60, e Maracy tem o plano de lançar cópias digitais que possam ser adquiridas por metade disso.
É o próprio editor que faz o que ele chama de "arqueologia quadrinística" copia as tiras que faltam no acervo pessoal de Laerte de periódicos antigos nas hemerotecas com um pequeno scanner de mão e envia para sua editora de arte, que trata as imagens. "Sou provavelmente o maior arquivista da Laerte. Tenho coisas que nem ela sabe que publicou", ele diz.
Para viabilizar o formato rústico da empresa, ao lado dos parceiros Zander Catta Preta e Juliana Sales, Maracy contou com amizades cultivadas ao longo dos anos. A Z Edições tem, além de Laerte, Adão, Ricardo Coimbra, Allan Sieber e Caco Galhardo em seu elenco de autores.
LAERTE TOTAL V.9
- Preço R$ 60,00 (86 págs.)
- Autoria Laerte
- Editora Z Edições