Com suas roupas estampadas e berrantes, chapéu de palha na cabeça e indiscretos óculos escuros, além de cordões e anéis de pedra espalhados por todo corpo, ele perambula pelas ruas brincando, tirando onda. É “um maloqueiro, um palhaço”, conceitua Fátima Pontes, variando entre a expressão típica de Recife e a da figura conhecida no mundo todo, símbolo da artimanha lúdica. Coordenadora da Escola Pernambucana de Circo e produtora de “Circo Science – do Mangue ao Picadeiro”, que a Trupe Circus traz nesta quinta (7) a BH, ela tenta capturar com palavras a silhueta esguia e escorregadia daquele que é o inspirador e homenageado do espetáculo. 

“Chico Science se transformava no palco, ele era um grande palhaço que apresentava as atrações. O circo vem dos ciganos, que são considerados povos originários, mas os circenses ainda não. A arte circense e o manguebeat são expressões da nossa cultura popular”, delineia Fátima, costurando as imbricações que o espetáculo realiza a partir de malabares, equilibrismo, palhaçaria, dança, projeções, batidas eletrônicas e ritmos de maracatu, em que a música de Chico Science conduz essa dramaturgia profundamente ampla. Com Maria Karolaine, Gabriel Marques, Bruno Luna, João Fernando, João Vítor e  Ítalo Feitosa o tempo inteiro no palco, os números musicais procuram adensar aquilo que o corpo mostra.

As temáticas perpassam os benefícios e males da internet, a noção de coletividade e os preconceitos contra a juventude periférica, negra e LGBTQIAPN+, “levantando questões sociais e políticas sérias sem abrir mão do entretenimento e da integração com a plateia”, salienta Fátima. Ritmos potentes na contemporânea periferia de Recife, como o brega funk, conversam com o rap e o hip hop. “Da Lama ao Caos”, por exemplo, ilustra um momento de pula-corda em que a tentativa de invisibilização converte-se em transformação, enquanto “Risoflora” presta uma ode às drag queens.  

“É como o Chico falava, ‘uma antena parabólica enfiada na lama e a cabeça no mundo’. Porque a lama é um bioma do mangue muito rico em espécies, e ele trouxe isso à tona, junto com os estudos que fez sobre (o médico pernambucano) Josué de Castro (1908-1973) e a geografia da fome. Recife era considerada a quarta pior cidade do mundo para se viver. As músicas dele tinham um pensamento muito forte de reflexão sobre o que é ser negro e periférico, e ele fez essa juventude se enxergar com potência”, observa Fátima. Na opinião da produtora, o manguebeat “explodiu como um levante”. “Falar de Chico Science é sempre um manifesto. É correr risco. Estar em coletividade. Mirar o futuro com respeito à ancestralidade”, afiança. 

Sonho & desejo 

O percurso para chegar até aqui foi longo. A primeira fagulha de “Circo Science – do Mangue ao Picadeiro” nasceu em 2020. No entanto, a pandemia de Covid-19 que vitimou milhares de pessoas ao redor do mundo acabou adiando os planos. Somente no final de 2022 a pesquisa cênica engatou de vez e o sonho começou a virar realidade. 

O desejo de trabalhar sobre a histórica diversidade cultural do país com vistas à contemporaneidade foi o que deu forma ao espetáculo. “O circo sempre foi contemporâneo, sempre teve música, teatro, dança. Era itinerante e falava politicamente de onde vinha. Levava cantores e cantoras do rádio para o picadeiro. Tinha som, iluminação”, argumenta Fátima.

Ao mesmo tempo, o manguebeat de Science e a Nação Zumbi levou Pernambuco “a ser conhecido no Brasil e no mundo todo, ampliando esse reconhecimento e chegando às juventudes periféricas submersas pelo preconceito”, reforça. Com quase três décadas de estrada – marco que coincide com o lançamento do EP “Da Lama ao Caos” – é a primeira vez que a trupe desembarca em Belo Horizonte. 

“A arte circense tem essa peculiaridade de um trabalho em grupo que demanda custos maiores que outros. Não se faz circo sem equipamento, sem materiais, temos uma cenografia criada especialmente para cada espetáculo. Os números exigem uma força e um equilíbrio corporal e mental muito grande dos integrantes”, explica Fátima. 

Disposta a “descobrir uma conexão” com o público mineiro e os demais que eles irão visitar nessa primeira turnê nacional, a companhia já mira novos voos. “Temos mais de 15 espetáculos no nosso repertório, todos de muito sucesso em Recife, e agora a nossa vontade é participar de festivais mundo afora com essa juventude fervente da nossa Escola de Circo”, arremata a entrevistada. 

Serviço

O quê. Espetáculo “Circo Science – do Mangue ao Picadeiro”, da Trupe Circus

Quando. Nesta quinta (7), às 20h

Onde. Teatro Raul Belém Machado (rua Leonil Prata, 53, Alípio de Melo)

Quanto. Gratuito, com retirada de ingressos pelo www.sympla.com.br