Rio fundamental para a economia gaúcha, passando por mais de cem cidades do estado sulista, o Taquari é bem calmo, sem nenhum relato de peixes ameaçadores em seu curso de 390 km. Mas por um breve momento, após a primeira exibição de “Tubarão” na TV brasileira, em setembro de 1984, ele recebeu um ser de dentes afiados e mortíferos, com uma fome assassina de sangue.

“Na manhã seguinte (à exibição) os garotos da rua só falavam do filme. Eu morava a menos de 500 m do rio, onde costumávamos nos banhar, mas no verão seguinte, mesmo sabendo que tubarões não habitam água doce, era difícil não imaginar o tipo de criatura assombrosa que poderia se esconder abaixo daquelas águas caudalosas”, recorda Cristian Verardi, cineasta e crítico especialista em cinema fantástico.

Verardi e “Tubarão” nasceram no mesmo ano, 1975. Apesar de o primeiro contato com o filme – um divisor de águas no mundo do cinema, ao instaurar os blockbusters (produções lançadas no verão americano com grande potencial comercial) – ter acontecido só nove anos depois, ele cresceu ouvindo relatos apavorantes dos mais velhos, que tiveram a oportunidade de vê-lo nos cinemas.

Cinquenta anos mais tarde, o fascínio pela obra assinada por Steven Spielberg só cresceu, com a estante de casa abarrotada de versões em mídias físicas (VHS, DVD e blu-ray), action figures e canecas, além de exemplares do livro de Peter Benchley, origem da história que se tornou um marco do cinema mundial.

Na época, “Tubarão” se tornou a maior bilheteria da história e o primeiro a passar da casa dos US$ 100 milhões. Relançado em 3.200 cinemas dos Estados Unidos há dez dias, o longa faturou US$ 9,9 milhões (R$ 53,8 milhões), aumentando a arrecadação doméstica para US$ 283,6 milhões, de acordo com a publicação especializada “Variety”. Ajustado pela inflação, o valor alcança mais de US$ 1,2 bilhão.

“‘Tubarão’ é um fenômeno de audiência, que mudou Hollywood para sempre. Esteticamente, ele se diferenciou de outros filmes da época, aproximando-se mais de (Alfred) Hitchcock, Jacques Tourneur e Roger Corman do que das obras políticas, ‘sérias’, de extração moderna, produzidas por muitos de seus conterrâneos”, destaca Fábio Feldman, professor e crítico de cinema do site Rocinante.

Para ele, “Tubarão” mudou completamente o jogo do que estava sendo feito no cinema americano de então. “Trouxe empolgação e certa ‘leveza’ a um contexto carregado, no qual antigos diretores, desconectados dos tempos em que viviam, rivalizam com uma nova leva de ‘enfants terribles’, experimentadores radicais que injetaram o espírito da contracultura na indústria hollywoodiana”, observa.

O filme de Spielberg, na avaliação de Feldman, era outra coisa: uma peça de entretenimento de altíssima qualidade, com uma história simples, tensa e atraente. “Não era pesadamente político, como ‘Taxi Driver’ ou ‘O Franco-Atirador’; filosófico e denso, como ‘Cinzas do Paraíso’ ou ‘Corrida sem Fim’; ou careta, como ‘Patton’ e ‘A Primeira Página’”, compara.

“Trata-se, acima de tudo, de um terror ‘explotation’ de alto orçamento, dirigido por um jovem e talentosíssimo autor”, define Fábio Feldman. Em 1975, Spielberg, tinha 28 anos e dois longas no currículo – “Encurralado” (1971) e “Louca Escapada” (1974). Por várias vezes, durante a produção, ele quase abandonou o barco, devido às dificuldades técnicas, como as filmagens no mar e a busca de uma concepção realista do tubarão assassino.

O fato de esconder mais do que mostrar o “bichão” se tornou o elemento de sucesso do filme, com o suspense ampliado pela marcante trilha sonora de John Williams. Na história, uma cidade balneária está pronta para receber os turistas quando um tubarão-branco começa a matar banhistas, reunindo um chefe de polícia (Roy Scheider), um biólogo (Richard Dreyfuss) e um pescador para enfrentá-lo (Robert Shaw).

Autor do livro “O Mal-estar da Sociedade Americana e Sua Representação no Cinema” (editora Giostri), no qual analisa os filmes “Rocky, o Lutador” e “Os Embalos de Sábado à Noite”, lançados na segunda metade da década de 1970, o crítico Sérgio Alpendre pondera que “Tubarão” carrega certa ambiguidade ao ser analisado sob a luz do cinema americano produzido naquela época.

“Ele acena com um término da Nova Hollywood, se considerarmos que esse movimento nasceu nos anos 1960 com filmes mais críticos e ambíguos. Com estratégia de marketing ousada, ‘Tubarão’ provocaria uma espécie de renascimento de Hollywood como indústria milionária. Por esse mesmo motivo, há quem considere que o movimento nasce aí, porque ela sempre foi indústria e o que viera antes era um hiato”, explica.

Para Cristian Verardi, Spielberg acabou resgatando a percepção do cinema como espetáculo, algo que, na sua avaliação, estava se perdendo com a ascensão dos filmes da Nova Hollywood. “Ele resgatou em grande escala aspectos do cinema aventuresco dos filmes da Era de Ouro de Hollywood, acrescentando suspense e horror a uma fórmula que acabaria empolgando uma nova plateia”, comenta.

Verardi sublinha que o impacto da produção foi instantâneo. E que pode ser observado, para o bem e para o mal, até os dias atuais. “De efeito imediato, sua impressionante bilheteria possibilitou a existência de filmes como ‘Star Wars’ e gerou dezenas de obras que copiaram a sua estrutura, como todo um ciclo de plágios descarados realizados na Itália. O esperto cinema brasileiro também tiraria sua casquinha com a paródia ‘Bacalhau’”, registra.