Literatura

'Flicts', de Ziraldo, segue atual após 50 anos

Obra se tornou um marco da trajetória pessoal do escritor, desenhista e jornalista, além de representar um divisor de águas na história do livro no Brasil

Por Carlos Andrei Siquara
Publicado em 09 de junho de 2019 | 00:03
 
 
 
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Mais do que um marco do início da trajetória de Ziraldo na literatura infantojuvenil, “Flicts” foi um divisor de águas na história do livro no Brasil. Seu projeto gráfico, arrojado para a época, não só refletiu o olhar apurado do escritor, desenhista e jornalista para a composição de cores, mas também inaugurou uma estética que até hoje segue respeitada como uma grande referência.

“O que Ziraldo fez pode parecer algo comum hoje, mas, até 1969, não havia nada parecido com aquilo. Naquele momento, não tínhamos ainda o entendimento de design como agora. Ziraldo construiu todo o livro à mão. É algo realmente incrível perceber como ele já tinha todo aquele entendimento de produção gráfica que encontramos no livro. Quem olha para ‘Flicts’ hoje pode pensar que ele foi feito no computador, mas, na verdade, foi o oposto disso”, ressalta Edith Derdyk, que é artista plástica e escritora.

Opinião semelhante compartilha o ilustrador e escritor brasileiro Roger Mello, que foi contemplado, em 2014, com o Prêmio Internacional Hans Christian Andersen, na categoria ilustrador – honraria considerada o Nobel da literatura infantojuvenil. Ele pontua que “Flicts” também é celebrado internacionalmente. 

“Eu estive na Feira de Bolonha (realizada na Itália) – que é considerada a mais importante da literatura infantil e juvenil –, quando ela completou 50 anos (em 2014) e apresentou uma grande exposição histórica. E o Ziraldo estava lá, entre os maiores ilustradores do mundo. Ele ficou muito conhecido no exterior por causa de ‘Flicts’, que foi traduzido para várias línguas”, relata Mello.

Ele acrescenta que o título conquistou o mundo por apresentar um experimentalismo avançado, mas sem deixar em segundo plano a contação de histórias que caracteriza os trabalhos de Ziraldo. “O livro funciona em qualquer lugar do planeta, e o mais bacana é que ele tem aquele traço afetivo que encontramos no que Ziraldo produz. Ele gosta de contar histórias, e é disso que vem o dado mais humano e mais afetivo dele. ‘Flicts’ é super gráfico, mas ele não é um livro duro. O risco de se fazer um trabalho não representacional é que ele pode acabar ficando desinteressante do ponto de vista da leitura. Chato mesmo, experimental demais. E ‘Flicts’ é completamente diferente disso”, comenta Mello.

Sacações 

Para o ilustrador, o livro pode ser entendido como um dos casos mais geniais de como o texto é indissociável das imagens, compondo um todo harmônico.
“Ziraldo sempre nos surpreende com algumas sacações. E ‘Flicts’ mostra bem isso, porque ele traz a contação de histórias, o tom afetivo e, ainda por cima, a surpresa. No fim, você acaba tomando um susto, porque o texto é incrível”, diz Mello.

“Você percebe como o roteiro do livro funciona muito bem. Os elementos estão todos conectados, não conseguem se separar. O ritmo do passar de páginas, palavra por palavra, é maravilhoso. Ao mesmo tempo, Ziraldo demonstra ali uma poética muito seca. Não há nenhuma gordura ali. Eu acho que ‘Flicts’ mostra bem como é possível se fazer um livro pensando nele como um objeto, algo completo em si”, conta Mello. 

É sabido que “Flicts” foi produzido em um prazo exíguo, mas, para o ilustrador, não surpreende que, apesar dessa condição, Ziraldo tenha alcançado a excelência. “Eu trabalhei com Ziraldo e tenho certeza de que ele não deve ter dormido durante os dias que estava trabalhando nesse livro. Ele nos dizia assim: ‘quando você não tem tempo, faça alguma coisa que você saiba fazer, não invente’. Mas, na prática, é visível que, às vezes, ele fazia o oposto disso. Ele sempre trabalhou no contraditório. E, se ele chegava a uma forma simples, pode saber que é porque ele já tinha feito aquilo muitas vezes antes. Lembro que para chegar até a caricatura final de Carlos Drummond de Andrade, que é um poeta que ele tem adoração, Ziraldo fez mil desenhos antes”, afirma Mello. 

Tradição

Fernando Vilela, também ilustrador e escritor, sendo ele um dos únicos brasileiros a participar da Exposição de Ilustradores da Feira de Bolonha deste ano, acrescenta também como, em ‘Flicts’, Ziraldo dialoga com trabalhos de outros artistas, como o italiano Bruno Munari (1907-1998). 
“Acho que ele se a aproxima também dos livros experimentais do início do século XX, da vanguarda russa e, com isso, influenciou toda uma geração que veio depois, no fim dos anos 90, início de 2000, e que vai lidar com o livro de uma maneira inventiva”, sublinha Vilela.

Temáticas do livro ainda reverberam no presente

Concebido em 1969, durante a ditadura militar no Brasil, “Flicts”, para a artista plástica e escritora Edith Derdyk, apresenta, assim, reflexões sutis conectadas àquele momento, mas que, a seu ver, continuam reverberando hoje, em razão do clima hostil encontrado no presente. 

“Esse livro traz uma perspectiva poética, abstrata, sensível e uma forma de escape porque ele fala de um lugar que é para fora da Terra. Então, é muito sintomático que, nessa situação que estamos vivendo agora, esse livro, que completa 50 anos, continue contendo tamanho significado, quando vivemos, novamente, uma situação abafada, opressora”, diz Edith.

O ilustrador e escritor Roger Mello ressalta, como em “Flicts”, pode-se identificar também a questão do exílio. “Eu acho que ele já trata, de certa forma, desse aspecto que surge hoje de maneira muito forte. O que é algo fascinante de ser percebido”, comenta ele.

A escritora Janaína Leslão, por sua vez, ressalta o olhar para a diversidade como outra perspectiva possível de ser relacionada com “Flicts”. “Esse foi um dos primeiros livros que eu tive contato nos anos 80. Eu lembro de ter visto a questão da diversidade, do preconceito e da igualdade abordados ali quando li ‘Flicts’. A história e o modo como ele lida com a temática do afeto foram aspectos que mais me atraíram”, conta. (CAS)

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