O filme francês "Espírito de Família" (Eric Besnard) é apresentado pela sua distribuidora no Brasil com três tarjas indicativas de gênero: drama, comédia, família. Corretas. Mas, nesta tríade, ao contrário até mesmo do que sugere a imagem que ilustra o cartaz, o aspecto que mais se sobressai é, de fato, a primeira - mesmo que sim, haja pitadas de comédia. O filme diz a que veio logo na primeira parte, quando o patriarca da família, Jacques  -  François Berléand, figura bem conhecida do público cinéfilo brasileiro (ler ao final) - parece estar realizado por ter conseguido reunir a família em sua charmosa casa às margens de um rio. Mas a cena inicial, na verdade, o primogênito, tratando de dar curso à sua veia literária dedilhando no computador, no jardim.

Alexandre Vient (Guillaume de Tonquédec), o filho em questão,  parece estar absolutamente orgulhoso com o curso de suas ideias, até ser interrompido - primeiro pela mãe Marguerite  (Josiane Balasko), que traz uma fatia de bolo;, depois pelo pai, na sequência, pelo filho pequeno, Alex (Jules Gauzelin), que quer jogar bola; e, segundos depois, pelo irmão, Vincent.  "É bonito um homem que cria", diz o pai, justificando o fato de cortar, sem cerimônia, o fluxo criativo do rebento. 

Diante do incômodo visível de Alexandre, a mãe desconversa: " A verdade é que ele não tem um espírito de família", citando o título do filme - e fazendo com que o escritor, irritado, se desloque para outro lugar, no caso, uma cabana, onde em tese ficaria em paz. Debalde.  Em poucos segundos lá está ele, seu pai, e então desenovela-se um monólogo de teor contundente. Enquanto o filho faz ouvidos moucos, atento à tela do laptop, Jacques lembra como as coisas um dia foram diferentes. No passado, era o filho a pedir "me deixe escrever com você na cabana". Não bastasse, para chamar a atenção do famoso fotógrafo que um dia Jacques foi, Alexandre passava a mexer ruidosamente em tudo à sua volta. "E eu te mandava para a cama - mas estava errrado. Um dia, você acorda e seus filhos não precisam mais de você", constata o patriarca, em desalento.

O que acontece a seguir é totalmente inesperado e, como está na sinopse e no trailler, não  é incorrer em spoilers contar que Jacques tem um infarto fulminante.  Logo após a cremação do corpo do pai, ao entrar no carro, ainda aturdido, Alexandre esquece a urna com as cinzas sobre o teto do veículo, e é advertido pelo próprio pai de sua negligência. 

Sim. A partir daí, Jacques passa a se corporificar aos olhos do filho - e apenas aos dele, que, atônito, passa a ter um bloqueio criativo. O espírito de família deixa de ser apenas um sentimento para se tornar também uma situação. E o romance que Alexandre estava escrevendo, portanto, fica no estaleiro, e as relações familiares atingem seu ponto máximo de tensão. 
Roxanne (Isabelle Carré), a esposa, acusa Alexandre de sequer reparar na cor da roupa que veste. Aos poucos, o escritor vai tomando ainda mais ciência da pecha de individualista que o cerca. "Desde quando  está interessado em alguém além de você?", pergunta, a certo momento, o irmão, Vincent (Jérémy Lopez).  E dirige palavras bem duras ao frère: "Você é escritor, o grande homem, o único que sofre. Está acima, e nós, abaixo. Nós temos que trabalhar para pagar os boletos, porque, claro, nos falta imaginação. Pensamos pequeno. Vidas pequenas e chatas".  Já a mãe é mais sintética: "Eu te amo, mas você não é o tipo de homem que chamamos quando temos um problema. Parece que estamos sempre incomodando". Ao ser instada a defini-lo em uma só palavra, a cunhada Sandrine (Marie-Julie Baup), por sua vez, escolhe de bate-pronto "egoísta".

Mas a convivência familiar forçada abre espaço para uma série de constatações também para os outros integrantes. Nunca havia passado pela cabeça de Vincent, por exemplo, que Alex fosse familiarizado ao universo do rugby. E os irmãos nunca poderiam imaginar que a mãe estava afundada em dívidas. Na verdade, quantas vezes de fato não topamos com aspectos inusitadis da vida de quem pensamos conhecer a fundo, ou com quem temos uma proximidade física intensa?


Aos 40 e poucos minutos, a história tem um ponto de virada relevante, e é a partir daí que o espectador constata que o pai não é aquela pessoa tão cheia de predicados assim, mas também um ser falível, o que deixou marcas indeléveis na personalidade dos filhos. O egoísmo, a pouca disponibilizade para conversar e mesmo a dificuldade em demonstrar afeto têm o seu porquê revelado. E a partir de algumas catarses particulares, os traumas são expurgados para a vida poder retomar a seu curso. Não de modo perfeito, como num anúcio de margarina, mas do jeito possível. E ao som de "Father and Son", de Cat Stevens - que pode parecer uma escolha óbvia, mas, bem.. como é linda. Afinal, que pai (mâe) nunca ensejou dizer a um filho (a): "I was once like you are now/And I know that it's not easy".

Berléand. Atualmente com 68 anos, atuou em vários filmes que tiveram a oportunidade de serem exibidos no Brasil, de filmes celebrados, como "Au Revoir, Les Enfants" e "Camille Claudel", a produções contemporâneas, como "A Voz do Coração", "Entre Amigos", "Encontros" e "O Concerto". Já Balasko, em "Josephine", "Deixe a Luz do Sol Entrar" e "Bela Demais Para Você.