Ser eleita a melhor chef mulher da América Latina de 2024 pela edição do Latin America’s 50 Best Restaurants - ranking que elege os 50 melhores restaurantes do mundo -, significa não só a força do protagonismo feminino na cozinha profissional, mas também a possibilidade de trazer mais visibilidade para a Bolívia, país de Marsia Taha Mohamed.
A chef trabalha para promover sustentabilidade e acessibilidade aos ingredientes da Amazônia boliviana. Antes de receber o troféu na cerimônia de premiação que acontecerá no dia 26 de novembro no Rio de Janeiro, Marsia conversou com O TEMPO sobre o reconhecimento, seus planos futuros e sua ligação com a comida mineira. Aliás, foi em Belo Horizonte que ela experimentou - e aprovou - a dobradinha.
O que significa para você e para o seu trabalho na cozinha profissional ser eleita a melhor chef feminina de 2024 da América Latina? Esse prêmio é uma celebração não somente para o meu trabalho, mas para a gastronomia boliviana. Apesar de ser um prêmio individual, eu considero que é um prêmio coletivo, para a cozinha da Bolívia. É uma grande alegria. A verdade é que tenho muitas referências de cozinheiras na América Latina, excelentes e muito talentosas. Ser escolhida em meio a tantas mulheres tão boas é uma honra, um orgulho e também uma grande responsabilidade. O prêmio do Latin America's 50 Best Restaurants me dá voz e me ajuda a dar visibilidade para as coisas boas que estão acontecendo aqui na Bolívia, que são muitas.
Ser escolhida como a melhor chef da América Latina também pode trazer novas mudanças significativas para a gastronomia boliviana? Eu acho que, sim, vai trazer mais visibilidade à Bolívia em geral e especialmente à gastronomia. A visibilidade do Latin America's Best Female Chef 2024 dá visibilidade não só para mim, mas para tudo o que está ao redor e tudo o que tem no meu país. E sim, espero com muita ansiedade que também este prêmio possa atrair atenção a tudo o que está acontecendo aqui na Bolívia. Temos uma gastronomia infinita, diversa e muito rica.
Foram 10 anos de Gustu, restaurante que foi reconhecido diversas vezes como “o melhor restaurante boliviano”. Que avaliação você faz da sua trajetória durante todos esses anos à frente desta cozinha? Desde o momento que tive oportunidade de colocar mais da minha cozinha no restaurante, busquei a identidade e os sabores bolivianos. Mas eu sou uma pessoa muito curiosa em geral e acho que uma das oportunidades mais bonitas que tive no Gustu foi criar a organização Sabores Silvestres junto com o WCS (Wildlife Conservation Society). O projeto enriqueceu muito o trabalho do restaurante, já que através dele conseguimos conhecer territórios e culturas que talvez não fosse possível por conta própria. Entramos em contato com muitos ingredientes que não chegam necessariamente aos mercados populares e assistimos a técnicas ancestrais maravilhosas. Então, para mim, o mais importante foi apresentar um sabor com identidade boliviana e, em segundo lugar, ter contribuído para a criação deste projeto que alimenta o restaurante.
Agora você está focado em seu próprio restaurante, batizado de Arami; que significa “pedaço do paraíso”. Qual é o motivo deste nome? Arami significa" pedaço de céu" em Guarani. E Guarani é um dos muitos idiomas nativos que temos na região. O nome tem a ver com o conceito da minha cozinha. É uma cozinha que faz homenagem a tudo o que eu estudei nos últimos anos. Eu fiz muita investigação nas terras baixas do Chaco e nas terras amazônicas. Essas regiões têm um potencial gigante, mas muito pouco explorado, em relação a ingredientes. No Arami, o protagonista vai ser o produto amazônico. Não é um conceito 100% purista porque o restaurante está em La Paz, que são as terras altas, que são os Andes, onde eu vivo e de onde eu sou. Então, logisticamente, não é fácil servir apenas 100% produto amazônico, mas esse será o foco.
Como será a cozinha do Arami no que diz respeito à promoção do uso de ingredientes nativos bolivianos? A Bolívia é um país geograficamente muito grande, muito extenso. Então, poder criar logísticas sustentáveis para que os produtos possam chegar ao restaurante sempre foi um desafio para os produtores e também para nós. Não existe, infelizmente, a melhor infraestrutura em relação às estradas para que esses produtos cheguem bem até as cidades. Enviar pescados, que precisam viajar 12 horas, ou frutas, que são altamente fermentáveis, é muito difícil. Estamos há anos trabalhando para ver qual é a melhor maneira de trazer ingredientes de comunidades indígenas da Amazônia. No Aramis, mais de 80% dos insumos vão vir dessas localidades. Considerando que são insumos que foram consumidos durante séculos por essas comunidades, mas que seguem desconhecidos nas cidades, colocá-los no menu traz grande visibilidade. Ou seja, no nosso menu terão muitos produtos "novos" e sabores "novos".
Você se dedicou à busca do conhecimento culinário na Amazônia boliviana. Como você avalia essa pesquisa para fortalecer esse bioma? Quanto mais diverso é o nosso consumo, e quanto mais produto amazônico se consome, mais vamos preservar as paisagens amazônicas. Na Bolívia, estamos enfrentando algumas das queimadas mais intensas da história da Amazônia. Perdemos uma quantidade inestimável de fauna e flora. Esse problema se traduzirá na expansão de terras agrícolas dentro para a plantação de forragem animal ou soja. E, bom, a razão da destruição é que não há um consumo diverso o suficiente e, portanto, interesse o suficiente para que as terras sejam conservadas como são. Seja como chef profissional ou cozinheiro de casa, comprar produtos amazônicos é ajudar a manter o bioma vivo. Além disso, o trabalho do Sabores Silvestres também abre oportunidades de mercado para os produtores nativos. Isso permite que eles façam o que sempre fizeram e que melhorem a sua qualidade de vida.
Como é o seu trabalho com o projeto Sabores Silvestres, que promove a acessibilidade aos ingredientes para outros chefs e cozinheiros? Sempre convidamos cozinheiros de outros restaurantes e regiões para ir conosco às expedições. Normalmente as viagens organizadas pela WCS incluem metade cientistas e metade cozinheiros, que buscam identificar produtos potenciais para servir em suas cozinhas. Um exemplo é que, após uma viagem para uma comunidade em Cachichira, do povo indígena Tacana, ao norte de La Paz, muitos chefs incluíram em seus menus a carne de jacaré. Por isso, a ideia é abrir a cabeça e promover conhecimento. Mostrar que fora há muito mais e que esses ingredientes têm um potencial grande e forte. Muitos restaurantes incorporaram em seus restaurantes pescados, frutos, nozes e raízes amazônicas. É um movimento que contagia e o Sabores Silvestres é uma plataforma muito boa para promover acesso, já que estamos falando de territórios difíceis de chegar sem ser por ONGs e fundações que têm laços estabelecidos com as comunidades. Há cada vez mais pessoas que trabalham e consomem esses produtos.
Quais são seus ingredientes favoritos para cozinhar? Uau, que difícil. Dos Andes, eu diria que são os tubérculos, os liofilizados ancestrais, como o Chuño e a Tunta. Já por parte amazônica, acho encantador o trabalho com a mandioca e a banana. Os dois ingredientes são muito versáteis e se tornam ainda mais com as técnicas originárias das comunidades amazônicas. Além disso, gosto de usar as folhas de coca, os frutos amazônicos, os peixes de rio... A verdade é que tenho muitos ingredientes favoritos.
Você é filha de pai palestino e mãe boliviana. Como essa fusão de culturas moldou o seu paladar ao longo dos anos? Quais são suas boas lembranças de comida? Eu vivi até os cinco anos com o meu pai e todas as memórias que eu tenho são do melhor azeite de oliva. O meu avô era produtor de olivas e de azeite, então nós chegávamos a uma qualidade única. Nos cafés da manhã, era sagrado comer pão árabe com quase um litro de azeite de oliva, zatar e homus. Era uma comida que comia com as mãos. Esses produtos especificamente me lembram demais dele e da minha infância. Na minha cozinha, eu não necessariamente uso sabores árabes, mas tenho pensado muito em abrir um lugar onde eu possa expressar esse lado palestino, que eu tenho muito forte no meu DNA. Um sonho que tenho é trazer esse pedaço de mim e da minha família, que ainda mora na Palestina.
Neste ano, a premiação dos 50 Melhores Restaurantes da América Latina será realizada em novembro no Rio de Janeiro. Quais são suas referências à comida brasileira e aos chefs brasileiros? Eu tenho um grande apego com o Brasil. Meu filho é brasileiro e parte da minha família mora no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte. Aos 18 anos, eu era mochileira e viajava por todos os lugares. O Brasil foi um dos meus primeiros países que conheci. Fiquei quase quatro meses por São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Sempre foi um país que me encantou, que transmite muito calor humano e que tem uma gastronomia imensa e mega diversa. Bom, o Brasil ocupa quase que a metade do continente, então obviamente há muita diversidade de produto, cultura e, claro, cozinha. Sou fã da cozinha brasileira, sobretudo da cozinha mineira. É incrível.
Há muitos chefs brasileiros que admiro. A Janaina Torres é uma grande amiga, uma grande pessoa, uma grande profissional. Também admiro a Luana Sabino e o Eduardo Nortiz, o mexicano brasileiro do Metzi. Eles fazem uma cozinha excelente. Tuca Mezomo, do Charco, também tem uma cozinha excelente e saborosa. Além deles, Rafa Costa e Silva, Roberta Sudbrack, Helena Rizzo e Alex Atala. No Brasil, há vários ótimos cozinheiros, mas bom, esses são os que eu me lembrei agora.
Há alguma comida brasileira que você já teve a oportunidade de comer ou cozinhar e que marcou seu paladar? As últimas comidas brasileiras que eu comi e amei muito são bobó de camarão e dobradinha. Meu Deus, a dobradinha é uma das coisas mais ricas que eu provei na minha vida, em um boteco em Belo Horizonte. Aliás, acho as cozinhas mineira e baiana excelentes.