“Milho quebrado que se dá a pequenas aves e pássaros” – é assim que o dicionário define a quirera, conhecida também como “canjiquinha” em Minas e “xerém” no Nordeste. Mas basta uma colherada para perceber que ela vai muito além dessa descrição simplista. Tradição antiga nos lares mineiros, a canjiquinha sempre foi prato de sustança: alimentou tropeiros, trabalhadores rurais e pessoas escravizadas por ser acessível, nutritiva e fácil de preparar. Com o tempo, essa base da comida de roça ganhou status, sem perder a simplicidade.
A canjiquinha aparece reinventada por chefs em restaurantes prestigiados de Belo Horizonte e de todo o Brasil. Mantém sua essência rústica, mas ganha toques criativos: milho crioulo, costelinha melada, ervas frescas, limão capeta. No restaurante Cozinha Santo Antônio, da chef Ju Duarte, a canjiquinha ganha forma, cor e sabor com afeto e ancestralidade. Feita com milho crioulo, mais colorido e saboroso, e servida com costelinha melada – preparada na panela de ferro, no tempo paciente do “pinga e frita” –, ela representa muito mais do que um prato típico de Minas: é um símbolo identitário.
Ju recorda que, muito antes de o arroz dominar os cardápios brasileiros, a canjiquinha já ocupava esse lugar de base alimentar, especialmente no período colonial. “Nossa cultura alimentar tem o milho como base. E a canjiquinha é isto: comida molhadinha, reconfortante, que remete à cozinha de casa”, conta. A receita que serve hoje em seu restaurante une tradição e um toque pessoal: limão capeta espremido no prato, dica aprendida com o marido e que, segundo ela, “faz toda a diferença”. Para finalizar, ela coloca folhas de ora-pro-nóbis crua. “Assim a gente aproveita mais o sabor e a textura”, acredita. Entre memórias e panelas, a chef reforça o que muitos mineiros sentem: “A gente se reconhece nesse prato, e é por ele que também somos reconhecidos”, disse a chef.
O mesmo prato também ganha um significado especial nas mãos da chef Aline Soares, do restaurante Judite Comida de Vó. “Minha primeira lembrança da canjiquinha é quando passei férias na roça da minha bisavó. Ajudei a moer o milho num moinho d’água, na beira do rio Piracicaba, em Minas Gerais. Minha tia-avó preparava o prato no fogão de lenha, com pedaços de porco na lata”, conta Aline.
Essa memória de afeto é a base do seu trabalho na cozinha. “Cada vez que faço canjiquinha, coloco toda essa lembrança junto”, explica. Hoje, a chef também aposta no milho crioulo, fornecido pelo Projeto Crioulo, para garantir um sabor autêntico, “aquele gosto de casa de vó”. A costelinha, assim como na Cozinha Santo Antônio, é preparada na tradicional técnica do “pinga e frita”, com bastante banha da charcutaria artesanal Beira Mato, o que confere um sabor marcante e uma textura suculenta.
Outro segredo para o toque único da canjiquinha do Judite está no uso do defumado: paio e tomates inteiros entram na finalização do prato, elevando a combinação de sabores. “Em uma boa canjiquinha nunca pode faltar um toque de defumado”, afirma Aline.
Além disso, a chef destaca a importância dos fornecedores na manutenção da qualidade e da identidade da receita. “As carnes que uso vêm do mesmo fornecedor há dez anos. Não abro mão de ter costelinhas frescas e paio do Rei da Feijoada, que fica no Mercado Central”, revela.
Técnica refinada
O chef Caio Soter, do restaurante Pacato, compartilha da ideia de que a canjiquinha é um ingrediente poderoso tanto do ponto de vista técnico quanto do afetivo. “Ela rende bem na panela e está sempre associada ao ato de compartilhar. Fica até difícil separar o lado emocional do lado técnico nesse prato”, comenta.
No Pacato, a canjiquinha é presença constante nos menus. Na versão atual, ela aparece em uma preparação cremosa que remete a um risoto, acompanhada de cogumelos como castanha, juba de leão e shimeji amarelo. O prato é finalizado com uma delicada espuma de queijo d’Alagoa, que tem sabor intenso e levemente picante.
“O milho crioulo que usamos na receita é mais saboroso, e isso muda tudo: traz mais textura, mais sabor e mais história ao prato”, exemplifica Soter sobre o ingrediente do Projeto Criolo, iniciativa que valoriza e preserva variedades de milho crioulo em Capim Branco, interior de Minas Gerais.
À frente de uma cozinha que dialoga com influências internacionais, mas tem raízes profundamente mineiras, o chef aposta numa estratégia curiosa: atrair o público por nomes conhecidos – como “risoto” – e, então, surpreendê-lo com ingredientes regionais.
“Meu trabalho é justamente este: provocar. As pessoas chegam procurando pratos internacionais e, muitas vezes, não se abrem para os sabores daqui. Aí a gente mostra que dá pra fazer um risoto com os nossos ingredientes, com a mesma sofisticação e muito mais identidade”, afirma.
Risoto de canjiquinha também é como o chef Leandro Dornas define o prato batizado de “Uai”, servido no restaurante Minas Demais. “Canjiquinha é milho triturado grosseiramente, então, quando cozido devagarinho, com carinho, vira um creme espesso, saboroso, que é puro aconchego”, define o chef.
A receita, que se tornou uma das assinaturas da casa desde 2018, aposta na simplicidade como ponto de partida. O preparo começa como manda a cartilha da cozinha de roça: refogado de alho e cebola, uma pitada de colorau e o tempo certo do fogo. “A base da canjiquinha é simples, e a gente não mexe muito nela. O sofisticado vem depois, com a técnica aplicada: finalizamos como um risoto, com manteiga e parmesão”, explica Dornas.
Lombo defumado, bacon artesanal, camarões e Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs), como maria gondó, enriquecem a receita. “A ideia é sempre trazer a alma mineira e um toque de delicadeza, sem deixar o prato gourmetizado demais a ponto de afastar quem vem em busca da canjiquinha de sempre”, diz o chef.
Frita pode ficar ainda mais gostosa
Foi em 2016, para participar do concurso Comida di Buteco, que o Koqueiros Bar, que fica no bairro Sagrada Família, criou outra versão de canjiquinha: frita, em formato de bolinho. A combinação original trazia ainda linguiça semidefumada reduzida na cerveja preta, carne serenada com alho-poró e bolinho de canjiquinha, que rapidamente chamou a atenção do público e se tornou a estrela do prato participante.
“A aceitação do petisco foi tão grande durante o concurso que decidimos criar uma porção só dos bolinhos”, lembra Caroline Braytner, proprietária do Koqueiros Bar. O segredo do sucesso está na massa bem-cozida e na fritura feita em temperatura ideal, garantindo um bolinho suculento e crocante.
Carolina ainda lembra que a ideia inicial não tinha um motivo específico, apenas o desejo de surpreender usando um ingrediente simples e acessível. “O bolinho de canjiquinha mostra que algo barato pode ser muito saboroso e agradar a todos”, destacam. Hoje, o petisco faz parte do menu do bar, leva queijo parmesão na receita e é servido com molho de abacaxi com pimenta.
Para começar com conforto
No restaurante Dona Lucinha, em Belo Horizonte, a canjiquinha é um verdadeiro abraço em forma de comida – e chega de dois jeitos para conquistar o paladar e o coração dos clientes pela chef Márcia Nunes, filha da matriarca Dona Lucinha. Logo na chegada, uma canequinha esmaltada de ágata chega à mesa, cheia daquela canjiquinha quentinha, temperada com sal, alho e urucum, perfeita para aquecer e confortar o estômago, como um “bem-vindo” afetivo da casa. Tudo arrematado com gotinhas de pimenta e cebolinha a gosto do freguês.
“Lembro quando a mamãe participou de um workshop de cozinha mineira em Miami, nos EUA, no início dos anos 1990. Ela fez um consomê de canjiquinha e disse aos convidados: ‘na minha terra isso é comida de pássaro, mas os mineiros adora’”, relembra a filha da matriarca.
Para a chef, a canjiquinha é um alimento sagrado. “Ela rende muito e é supernutritiva. À medida que pinga água, ela multiplica. É um alimento generoso”, disse.
No menu à la carte, a canjiquinha se transforma em um prato completo, acompanhada de costelinhas suínas suculentas, arroz branco soltinho, torresmo à pururuca, couve refogada e feijão.