“A culinária afro-brasileira está em todos os pratos de várias regiões do Brasil.” A frase da chef Kelma Zenaide resume bem a história da gastronomia brasileira. No dia a dia da nossa culinária, especialmente a mineira, fazem parte pratos originários da África que sequer nos damos conta, tais quais angu, quiabo, feijão tropeiro, as muitas carnes de porco...
Mas reconhecer essa identidade é fundamental para valorizar as raízes, preservar tradições e entender a contribuição ancestral que moldou (e molda) a cultura do país. Em Belo Horizonte, alguns chefs, cozinheiros e estudiosos se dedicam a manter viva tal herança, que compõe a base da nossa diversidade gastronômica.
Kelma é uma delas. Ela comanda o restaurante TERRITÓRIO Kitutu de Aquilombamento, localizado na rua Aarão Reis, no baixo-centro de Belo Horizonte, que resgata a culinária remanescente dos quilombos. O cardápio é feito de pratos autorais e variam conforme a sazonalidade dos ingredientes pesquisa da cozinheira.
Dentre os pratos mais pedidos, está o Angu de Mina, feito com fubá de moinho d’água. “Este prato foi criado em homenagem aos povos que vieram da Costa da Mina, que foram trazidos para Minas Gerais por seus conhecimentos valiosos: a tecnologia da agricultura e a do garimpo”, conta Kelma. A receita é acompanhada de coração de boi, suã e um caldo saboroso com batata, batata-doce, quiabo, jiló, abóbora, cenoura e couve.
No cardápio da cozinheira, também estão feijão tropeiro, feijoada, cuscuz… “Na África Antiga, o cuscuz era feito com trigo, e aí ele se adapta ao chegar no Brasil para ser feito com milho”, explica. Na lista de ingredientes de Kelma, também estão presentes a banana-da-terra, o quiabo, o amendoim e o coco.
“Comecei a usar esses elementos de forma muito intuitiva. Percebi que meu paladar pedia, e então, passei a compor pratos a partir desses ingredientes que carrego na minha carga genética. Costumo dizer que a nossa saúde alimentar só é precária porque escutamos mais a indústria do que o nosso próprio corpo”, analisa.
Recentemente, Kelma Zenaide participou do reality show culinário “Chef de Alto Nível”, no ar na TV Globo, em que teve oportunidade de levar e falar sobre comida afro-brasileira.
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Origem quilombola
Kelma Zenaide é remanescente do Quilombo de Pinhões, localizado em Santa Luzia. “Meu avô era um caboclo de lá, mas foi trabalhar em João Monlevade. De lá, se mudou para Contagem, que é a cidade onde eu nasci”, recorda-se. Assim que se mudou para a cidade da região metropolitana, o avô enviuvou-se. Daí, o patriarca passou a cuidar dos oito filhos sozinho e encontrou no preparo de carnes diversas uma das formas de sustento da família.
“Ele chegava do trabalho e macerava pimenta-malagueta, louro, cebola, pimentão, alho… Com esses temperos, preparava as carnes lentamente no fogão à lenha. Eu sou a neta mais velha e me encantava muito com esse fazer de meu avô, sobretudo quando preparava coração de boi recheado”, lembra.
Para rechear a carne, o avô de Kelma usava toucinho defumado no fogão à lenha e linguiça. “Depois, ele costurava com uma agulha de sapateiro, selava com gordura de porco e o cozinhava com o urucum. Eu digo que meu avô era um homem que costurava corações, porque ele é um homem também que as pessoas do bairro gostavam de sentar com ele para contar segredos e aflições”, comenta.
Outro prato que fez parte da herança gastronômica de Kelma é o macarrão com sardinha feito pela mãe. “Já tive resistência, mas é um dos pratos que mais gosto”, diz. Toda essa vivência no quintal de casa inspirou seu interesse em pesquisar a história e a identidade da culinária afro-brasileira.
A cozinheira chegou a ter três estabelecimentos, mas todos faliram. “Então, resolvi estudar e fiz especialização em literatura africana e afro-brasileira. A partir dela, comecei a compreender melhor a minha história e do meu povo”, afirma. Daí, ela construiu um Food-Kombi, e, pouco depois, abriu o Kitutu. “Estou feliz porque consigo contar a história do meu povo por meio dos pratos que criei”, comemora. Hoje, ela também trabalha levando seus pratos para eventos particulares.
Conheça o MandakNega
Desde criança, Stanley Albano tinha o sonho de empreender. Logo quando entrou na vida produtiva, se desdobrava entre o emprego de CLT e trabalhos como freelancer. O trabalho exaustivo o levou ao adoecimento mental e físico. “Essa época foi tão difícil que foi necessário me mudar de casa”, recorda-se.
O lar que encontrou tinha um quintal grande, mas mal-aproveitado. “Tive a ideia de criar algo que virasse minha fonte de renda”, conta. Inicialmente, a ideia era que o espaço servisse de café, mas, por sugestão dos amigos, decidiu montar ali um bar e restaurante. Nascia, assim, o MandakNega, espaço gastronômico e cultural que funciona no bairro Santa Efigênia desde 2019.
Antes se chamar MandakNega, o espaço de Albano tinha o nome de Mandacaru Quintal. “As pessoas que frequentavam aqui nunca me associavam ao dono do rolê e achavam que o proprietário era uma pessoa branca que me ajudava. Uma hora isso me incomodou tanto que resolvi enegrecer a ideia”, orgulha-se.
No espaço, que também funciona como local de eventos, Albano faz questão de colocar pratos de origem afro-brasileira, como o pastel de angu. “Em uma pesquisa, descobri que os escravizados escondiam carne dentro do angu e levavam-no para a fazenda. Até que um deles teve a brilhante ideia de fritá-lo, e, a partir disso, surgiu essa deliciosa iguaria”, conta. Da história, nasceu até um curta batizado de “Angu Recheado de Senzala”, em que Albano conta a história da delícia.
Por lá, também são servidos feijão tropeiro, coxinha de limão e de costela, massa fresca, moquecas e paella mineira. O cardápio não é fixo e varia conforme avançam as pesquisas de Albano.
“Nossa culinária é reflexo de muita coisa trazida de fora, e os afrodescendentes tiveram esse importante papel na nossa gastronomia: foram os alimentos que salvaram muitos dos nossos do quadro da fome”, analisa. O MandakNega funciona de sexta a domingo, mediante reserva. Acompanhe a programação no @mandaknega.
Cozinha quilombola
Até seus 15 anos, Geysa Rosa Gomes morou no Quilombo de Fátima, na Zona da Mata. De lá, se mudou para Belo Horizonte para dar continuidade em seus estudos. Por aqui, fez graduação em gestão de eventos, área para a qual se dedicou por outros 15 anos.
No entanto, permanecia viva nela todo o aprendizado quilombola. “Meu avô sempre foi dono de bar e minha avó, quitandeira. Eu vivia praticamente na cozinha, crescendo entre panelas e aromas, vendo prepararem costelinha com ora-pro-nóbis. Também observada a plantação de milho para produzir a polenta. Era essa convivência: plantar e criar para depois consumir”, conta.
Então, Geysa trocou os eventos por um empório, onde vendia produtos da roça. Depois, foi a vez de comandar um restaurante, no bairro Fernão Dias, mas precisou fechar as portas depois que o dono pediu o imóvel. Até que Geysa teve oportunidade de levar sua comida para o Mirante Butiquim, no bairro Concórdia.
“O espaço foi fechado por questões burocráticas e precisei me transformar mais uma vez”, comenta. Mas isso não significou o fim do trabalho de Geysa. Só que agora ela tem um projeto itinerante, em que leva seus pratos para eventos particulares e rodas de samba. “Preparo comida quilombola a base de milho e trigo, especialmente. Tenho pratos com carne suína, mini quibe e canjiquinha”, conta.
Nos eventos em que comanda, Geysa faz questão de introduzir comida quilombola. “O bufê atende clientes que muitas vezes não pensam, a princípio, em contratar comida afro. Para apresentar essa gastronomia, a ideia é introduzir o cardápio em um formato parecido com o de comida de boteco, ideal para eventos mais informais”, diz.
Então, ela monta uma mesa com petiscos à vontade. “Ali, as pessoas acabam transformando a festa em algo mais movimentado e, até sem perceber, compartilham dessa cultura. São elaboradas entradas frias e assadas, todas baseadas na culinária afro e quilombola. Entre os petiscos, estão opções como bolinho de feijoada, além de pratos personalizados como a paella mineira estilo tropeiro, arroz com suã e canjiquinha”, explica.
Delivery de comida ‘diretamente’ do Congo
As irmãs Princess e Olga comandam, há cinco anos, o delivery de comida africana Malewa Food, que, aos sábados, entrega as encomendas por todas as regiões de Belo Horizonte. Nascidas em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, elas vieram para o Brasil para estudar. Na UFMG, Princess se formou em publicidade.
“Percebemos que não tinha lugar nenhum aqui que vendia comida africana e sentíamos muita falta disso”, conta Princess. Então, ela e a irmã organizavam jantares para amigos, nos quais apresentava a comida típica de lá. “Até que fiquei grávida, e vi que seria mais difícil de conseguir emprego, e sempre pensei em abrir um restaurante. Na pandemia, a forma mais fácil de conseguir isso foi por meio do delivery”, conta.
O negócio deu certo. O Malewa chegou, inclusive, a receber mensagens de pessoas de outros Estados que queriam provar da comida das irmãs. O cardápio contempla especialmente comidas congolesas, como o pandu, feito com folha de mandioca batida com óleo de dendê, cebolinha e cebola, geralmente acompanhado por peixes, legumes, arroz e banana-da-terra.
Princess e Olga também fazem comidas típicas de outros países, como arroz com frango, banana-da-terra frita, cenoura, pimentão e cebolinha, comum em Camarões, e o sanduíche de banana-da-terra recheado com carne, salada e queijo, iguaria típica do Gabão.
Ela conta que encontra por aqui os temperos mais importantes para o preparo das iguarias. “O que muda é o processo. Por exemplo, quando faço um frango, também uso cebola, alho, pimentão, mas o diferencial está em como preparo. Amasso todos os temperos no pilão, e isso dá um sabor único. O jeito como amassamos os temperos, cortando e depois esmagando com uma pedra específica, também traz um sabor mais intenso”, explica.
O método de preparo também influencia no gosto da comida. “Utilizamos tanto equipamentos industriais quanto métodos tradicionais, como cozinhar na lenha com carvão ou na churrasqueira. Posso usar o mesmo tempero, mas, ao cozinhar no carvão, o resultado é outro”, revela.