A criadora de conteúdo adulto Emily Ferrer havia saído para jantar com um amigo quando, inesperadamente, foi atacada por uma desconhecida sob a acusação de ter estragado um casamento de sete anos após a mulher, que precisou ser contida por seguranças, ter descoberto fotos da modelo nua no celular do marido. A história toda, como é de praxe na era da superexposição, quando até barracos são ostentados, foi documentada, compartilhada e… viralizou.

Nas redes sociais, seguindo um padrão já conhecido desse meio, a cena passou, digamos, pelo escrutínio público, dividindo opiniões: de um lado, houve quem criticasse a criadora de conteúdo e se compadecesse da esposa que se sentia traída, e, de outro, quem tomasse as dores da influenciadora e considerasse imperdoável o destempero da mulher. Por trás do debate, por vezes inflamado, havia uma questão primordial: o que é, afinal, traição? E, mais especificamente, o que é traição na internet?

“Em primeiro lugar, é preciso ter clareza de que não existe um conceito universal, e, falando superficialmente, a traição estaria ligada a um descumprimento do contrato estabelecido pelas pessoas envolvidas na relação”, baliza o psicólogo Rodrigo Tavares Mendonça, especializado em psicoterapia de família e de casal. “Todo relacionamento de longo prazo tem seu acordo, na maioria das vezes implícito – o que avalio como um erro: tornar explícito o que é ou não aceitável ajuda os parceiros a se posicionarem no relacionamento”, complementa.

Mendonça aponta que, na maioria dos acordos, está implícita a fidelidade. “Mas, além de estabelecer se é necessário ser fiel ou não, é preciso definir o que significa essa fidelidade, o que vai variar muito de casal para casal”, analisa, indicando que o espectro do que é considerado uma traição é amplo: para alguns, o flerte virtual, mesmo sem envio de material sexual, pode ser encarado como problemático, para outros uma relação de amizade muito íntima e que é tratada como segredo por uma das partes pode ser encarada como inconveniente, por exemplo.

Entre outras diversas formas de entendimento, a exemplo do relato envolvendo Emily, há também aqueles que consideram o consumo de conteúdo adulto como algo que potencialmente vai desestabilizar a relação. Um fenômeno que não é atípico, informa a psicóloga e psicanalista Camila Fardin. “É muito comum. Muito mais das partes das mulheres que dos homens. E há algumas explicações para isso. O conteúdo adulto sempre aborda fantasias e mostra corpos dentro de um padrão estético específico, de forma erotizada que pode deixar algumas mulheres inseguras. Os homens são mais propensos a adquirirem vícios neste tipo de conteúdo. São comportamentos que afastam os casais”, avalia.

Camila, inclusive, reconhece que o tipo de flagrante vivenciado pela mulher que aparece no vídeo costuma gerar ressentimentos e motivar rompimentos. “É uma situação que sempre gera um desencontro das expectativas e dos acordos do casal. Brigas, rompimentos e marcas ficam. Mesmo que o casal permaneça junto, se dá parte de um deles um acordo foi quebrado, essa é uma marca que fica como um fantasma, assombrando o relacionamento, que deixa de ser prazeroso e passa a ser tenso”, menciona. 

A proximidade entre consumidores e produtores

É um fato: a internet facilitou não só o acesso como também a produção e a distribuição de conteúdo adulto. E, ao mesmo tempo, provocou uma sensação de proximidade com esses criadores. Afinal, se antes o contato com fotos e vídeos eróticos se dava por via de revistas, fitas cassete e canais de TV por assinatura, que selecionavam modelos muitas vezes inacessíveis, hoje é possível até mesmo interagir com essas personalidades por meio de mecanismos em plataformas que conectam consumidores e produtores. Os mais ousados podem até se interligar com seus modelos favoritos nas redes sociais.

Essa mudança de comportamento, analisa Camila Fardin, pode implicar um peso maior ao consumo do conteúdo adulto hoje, gerando a impressão de que a relação seria mais ameaçadora do que se o flagrante fosse de uma revista adulta armazenada em casa. Além disso, outras transformações nas dinâmicas nas relações sociais deixam a questão ainda mais densa.

“Vamos adicionar aqui a modificação que os casais foram adquirindo ao longo de décadas. Se antes as mulheres eram restritas ao lar e deviam atender aos desejos dos maridos e compreender determinados comportamentos,  hoje mulheres e homens estão em situações de mais igualdade nas relações e ambos podem colocar na mesa o que aceitam e o que não aceitam dentro do relacionamento”, cita, refletindo, neste caso, especificamente sobre relacionamentos heterossexuais.

A psicóloga pondera, por outro lado, que, apesar de comum, é equivocada a leitura que condiciona o consumo de conteúdo adulto ao sinal de uma relação insatisfatória. “Não é bem verdade para todos. Essa crença vai de encontro ao que cada um, na sua subjetividade, compreende se uma traição ou não. O que varia muito de pessoa para pessoa”, sinaliza.

Nesse sentido, Rodrigo Tavares Mendonça aponta que diferentes situações implicam diferentes pesos para a traição. “Muitas pessoas vão considerar a traição sexual como um ponto mais delicado. Tem outro grupo que vai considerar como mais grave a construção de vínculo afetivo”, situa. “Há também casais que aceitam uma terceira pessoa na relação, mas consideram traição uma aproximação romântica, e também aqueles em que a construção do vínculo afetivo não vai ser considerada traição”, aponta o psicólogo.

No caso das relações virtuais, “parece natural que a pessoa que vive mais tempo conectada dê mais peso à traição virtual”, diz. “Com a virtualidade ganhando mais espaço na vida dos indivíduos, é natural que mais situações assim apareçam”, pondera ele, asseverando que “relacionamentos virtuais são tão reais e legítimos como os físicos e envolvem os mesmos contratos de um namoro, sendo relações afetivas que não podem ser menosprezadas”.