Em “Maquinações do Mundo” (ed. Cia das Letras), José Miguel Wisnik propõe um olhar para a obra de Carlos Drummond de Andrade a partir da relação do poeta com a mineração – contra a qual, em muitas oportunidades, manifestou oposição. Em alguns textos, a referência se faz especialmente notável. Não por acaso, quando a barragem de rejeitos da Samarco, ligada à Vale, se rompeu em Mariana, na região central de Minas Gerais, em 5 de novembro de 2015, um poema publicado apenas em jornal voltou a circular: “O Rio? É doce. / A Vale? Amarga. / Ai, antes fosse / Mais leve a carga”, lê-se na estrofe inicial.

Em outras tantas obras do itabirano essa relação surge de maneira mais velada – ou sequer aparece, afinal, como natural do fazer artístico, claro, os poemas do itabirano são polifônicos e permitem interpretações múltiplas. Mas ainda é possível, seguindo a abordagem proposta por Wisnik, encontrar paralelos entre a sua poética e a denúncia do rastro de destruição causado pela atividade mineradora. 

A certa altura, no atemporal “E agora, José?”, de 1942, por exemplo, ele escreve: “Com a chave na mão / quer abrir a porta, / não existe porta; / quer morrer no mar, / mas o mar secou; / quer ir para Minas, / Minas não há mais”. Versos que, revistados pela atriz Bárbara Colen em entrevista a O TEMPO, parecem mais uma vez dizer sobre cicatrizes deixadas por uma cultura exploratória, que, além das montanhas devoradas, da flora e fauna devastada e dos rios sepultados, tem levado reiteradamente a histórias de abandono humano – social, emocional, histórico –, como luzes que se apagam após o fim da festa.

E é esta justamente a linha de costura do filme “O Silêncio das Ostras”, primeiro longa ficcional do diretor mineiro Marcos Pimentel, que, estrelado por Bárbara e Lavínia Castelari, lança um olhar sobre os impactos da mineração em Minas Gerais, com imagens reais das tragédias de Brumadinho e Mariana, mergulhando no que a atriz protagonista descreve como “uma ausência do Estado, uma completa exposição dos cidadãos aos interesses de empresas que só querem extrair lucro”.

“Não existia um sistema de alarme básico para avisar os povoados sobre o rompimento da barragem. Isso é uma das coisas mais absurdas que se pode imaginar”, comenta Bárbara ao refletir sobre o abandono vivido, ainda antes das tragédias, pelas comunidades da região. “Até hoje nada foi feito. As pessoas ainda esperam indenizações. Estão desprotegidas. Não existe retorno, não existe contrapartida. Nem sequer um sistema de prevenção básico”, prossegue, assinalando como essa situação só piorou após os rompimentos.

No longo, sua personagem se debruça sobre o luto e o silêncio, reverberando, nas entrelinhas, a realidade compartilhada por muitas famílias atingidas pelas tragédias de barragens: vidas suspensas, histórias interrompidas, pertencimentos diluídos na incerteza.

A atriz também vê na obra de Drummond uma lente de compreensão profunda. “Desde que terminamos as filmagens, várias montanhas já desapareceram. O Rio Doce já não é mais um rio vivo. Nosso estado está sumindo diante dos nossos olhos e nada está sendo feito. Pra onde poderemos ir se as coisas continuarem assim?”, questiona, evocando o mesmo espanto do “José” drummondiano.

Impacto psicológico

Personagens como aquela vivida por Bárbara Colen em “O Silêncio das Ostras” são um tanto familiares para Eulália Bortoni, psicóloga e educadora parental com especialização em trauma e neurociência afetiva, acompanha de perto os desdobramentos emocionais vividos por pessoas afetadas pelo colapso das barragens. Ela atuou, por exemplo, nas ações de assistência em Barão de Cocais, na região metropolitana de Belo Horizonte, e testemunhou como o trauma coletivo reverbera nas histórias individuais. “O trauma não está relacionado apenas a um evento que aconteceu, mas também aquilo que a pessoa precisou e não teve. É o abandono da proteção, do cuidado, do pertencimento”, assinala.

A psicóloga explica que o abandono social se expressa em múltiplas camadas – da ausência de políticas públicas estruturadas até a solidão daqueles que sobreviveram, mas que perderam suas famílias, seus amigos e, muitas vezes, precisaram renunciar à sua própria história, abdicando de seu modo de vida para se adequar a um novo ordenamento social, imposto sempre a partir de uma promessa vaga de prosperidade e progresso. “Vejo isso todos os dias no consultório: histórias que se repetem. A dor é física, mas também emocional. A desconexão, a falta de suporte afetivo, o sentimento de invisibilidade… tudo isso desestrutura a identidade”, ressalta.

Eulália explica que, em quaisquer situações, envolvendo ou não grandes acontecimentos, o abandono deixa marcas indeléveis. Como exemplo de situação de abandono comumente ouvida e comentada em sociedade, ela cita as populações idosas, muitas vezes queixosas de viver em uma época em que não se encaixam bem, sem ter o apoio de amigos, que já faleceram, e lidando com um desencanto em relação aos familiares. “Na velhice, tudo é reacendido. A ausência de conexão vivida na infância retorna com força. E os filhos, muitas vezes, lidam com esse cuidado a partir das feridas que também carregam. É um ciclo”, aponta.

“E essas experiências adversas alteram a nossa arquitetura cerebral. Elas moldam o modo como vamos responder ao mundo. Inclusive, uma pessoa que viveu insegurança e violência desde cedo terá menos recursos para lidar com adversidades quando adulta”. E o efeito disso pode ir de quadros leves de ansiedade a doenças físicas graves. “A neurociência mostra que há uma correlação direta entre essas vivências e o adoecimento”, reforça, citando estudos da pesquisadora Nadine Burke Harris.

Para dar conta do baque, uma estratégia comum de comunidades impactadas é a organização popular, que, entre tantas outras frentes, representa também uma tentativa de recompor o laço rompido com o mundo. Eulália reconhece nesses movimentos coletivos um importante caminho de cura. “São extremamente importantes essas mobilizações. Quando as vítimas se unem, compartilham suas vivências, elas criam vínculos de pertencimento, o que é essencial para a superação dos traumas”, estabelece. Mas ela faz um alerta: “É preciso cuidado para que não haja retraumatização. Falar sobre o que aconteceu é importante, mas é preciso garantir um espaço de escuta acolhedora, com apoio profissional”.

Por fim, Eulália salienta que a superação da situação de abandono precisa englobar um conjunto amplo de ações e salienta que a dor, para os que já viveram esse trauma, não desaparece, mas é possível olhar para ela de outra maneira. “Graças à neuroplasticidade, é possível ressignificar as experiências”, comenta. Ela vê na escuta, no acolhimento e no fortalecimento das redes de apoio os pilares de um futuro menos brutalizado. “A gente está caminhando, devagar, mas está. E isso me dá esperança”, conclui.