Atual Miss Bumbum, a influenciadora Bruna Dias, de 28 anos, surpreendeu os seus seguidores ao publicar uma carta aberta em que afirma sofrer preconceito por nunca ter se submetido a procedimentos estéticos. “Manter um corpo natural exige mais de mim do que apenas ceder às cirurgias, mas todo o esforço vale a pena”, escreveu. Na mesma semana, a atriz Carol Castro revelou, no lançamento da nova novela da Globo, “Garota do Momento”, que, aos 40 anos, é uma das poucas de sua geração a não ter enfrentado o bisturi para remodelar o corpo.
As declarações trouxeram à tona um termo conhecido como “naturalfobia”, que seria uma espécie de discriminação contra pessoas que não aderem à onda das cirurgias plásticas. A psicanalista Vanessa Teixeira problematiza o termo. “O discurso da ciência tem sido cada vez mais valorizado na sociedade atual, inclusive esse termo ‘naturalfobia’ é uma tentativa de nomear, por meio de um pseudo-diagnóstico, uma opinião ou crítica que se faça sobre um corpo que não passou por cirurgias”, sublinha.
Para Vanessa, “normalmente, o sujeito que banca ser diferente da maré, se diferenciar da massa, vai passar por críticas”. “Então, veja como a ciência parece ser usada para tentar encerrar todo tipo de mal-estar ou descompasso que o ser humano experimenta no mundo de hoje”, complementa. A psicóloga Kamilla Santana, fundadora da Consultoria Cocriar, define como “aversão ao corpo do outro, por ele ser natural”, a chamada “naturalfobia”, que, segundo ela, descende de um termo em inglês, “usado para representar o ato de uma pessoa ser ridicularizada somente pelo corpo que tem”.
Mestre em Educação, psicanalista e escritora, Jane Patrícia Haddad defende que “o importante é sentir-se bem com quem se é”. “Gostemos ou não, rugas, cicatrizes e imperfeições são parte do processo de humanizar-se e morrer também. Pensem nas pessoas que marcaram sua vida. Como elas eram? Nunca vamos nos lembrar de uma pele esticada, do dinheiro, das coisas, e, sim, do afeto. Padrões são para máquinas. Seres humanos envelhecem, perdem colágeno, têm rugas e histórias para contar”, diz.
Regras?
Kamilla Santana realiza um périplo histórico a fim de contextualizar a atual corrida desenfreada por procedimentos estéticos que marginaliza quem não se submete. “Na Grécia Antiga, por exemplo, o padrão valorizado era o corpo avantajado, largo e seios fartos. Anos mais tarde, na Era Vitoriana, a beleza era enaltecida nas mulheres que vestiam corpetes para afinar a cintura e mantinham os cabelos longos. Na atualidade, no Brasil, valoriza-se a beleza marcada pelo corpo magro, com seios e bumbum grandes e a barriga chapada”, compara.
Vanessa Teixeira sustenta que a relação com o corpo é sempre “complicada, cheia de camadas”. “Há incômodos que podem estar ligados a um impedimento para realização de alguma função, como pálpebras caídas que impedem a visão, seios muito fartos que afetam a postura e a coluna. Já a busca por procedimentos por motivos estéticos pode estar ligada a uma forte identificação com um padrão de beleza definido socialmente, em que a pessoa acredita que, se não estiver dentro desse padrão, seu corpo não é bom o suficiente, não é bem-visto, não é atraente nem valorizado socialmente”, pontua.
Vanessa acredita que as pessoas que não se submetem a procedimentos estéticos “talvez não sejam 100% satisfeitas com seus corpos, mas essa insatisfação não chega a um nível radical, de achar que é necessário passar por cirurgias e outras intervenções”. “Nosso corpo jamais será perfeito porque ele é mais do que um organismo que foi unificado a partir de suas partes. Ele tem atravessamentos sociais, de linguagem, de presença e ausência do outro. Se a gente tentar dar conta desse corpo reduzindo seus descompassos a questões orgânicas passíveis de conserto de acordo com um padrão estético, a gente corre o risco de entrar num looping de cirurgias sem fim, porque esse descompasso com nosso corpo não tem solução derradeira. O ideal do ‘corpo perfeito’ socialmente valorizado é impossível de ser alcançado, assim como todo ideal”, observa a psicanalista.
Reações
Kamilla concorda que “a regra da beleza ideal colocada para todos, com prevalência maior para as mulheres, gera consequências negativas, reflexo da obrigatoriedade de todos terem o mesmo padrão de beleza”. Um reflexo disso seria o surgimento de “movimentos que tentam questionar essa imposição da beleza sobre o corpo do outro”. Ela lista três, que crê serem mais comuns, entre os “diversos motivos para as pessoas não fazerem procedimentos estéticos”, relacionando-os a movimentos internacionais que valorizam os chamados “corpos positivos e neutros”.
O primeiro incentiva “cada pessoa a amar o próprio corpo, exatamente como ele é, tendo estrias, celulites ou qualquer outra característica fora do status mais valorizado”, enquanto o segundo “possibilita que essa aceitação do próprio corpo não seja algo ligado ao amor, mas, sim, da possibilidade de neutralizar o peso que existe de que a autoestima precisa estar associada a um corpo perfeito”, diferencia Kamilla.
O fato de a pessoa “já gostar da sua imagem, fazer um processo autocrítico e não sentir necessidade de alterar algo somente para agradar aos outros” também seria frequente entre pessoas que recusam procedimentos estéticos, assim como “a preocupação com os impactos, a longo prazo, dos procedimentos estéticos na saúde”.
Jane Patrícia Haddad considera que “recusar-se a procedimentos estéticos pode ser uma forma de se bancar e se reconhecer em sua própria história”. “Hoje, há uma distorção de imagem por parte da maioria dos jovens e adultos. Um vazio existencial que se faz presente em filtros, imagens idealizadas e o culto de uma juventude que não está no rosto ou na pele. A juventude está em saber amadurecer, usar seus melhores traços, sejam eles físicos ou psíquicos, para transmitir algo às novas gerações que estão aí, gritando por pessoas reais e valores inegociáveis”, conclui Jane.
Respeito à diversidade é fundamental
A psicanalista Vanessa Teixeira afirma que um dos grandes desafios contemporâneos é “criar uma sociedade inclusiva”. “A sociedade tem adotado um movimento de pequenos grupos identitários, que se formam em busca de identificação e aceitação mútua. Quanto mais minorias vão sendo formadas, mais notamos grupos com membros fortemente identificados uns com os outros. Dentro do grupo, a aceitação é intensa, mas, entre grupos, ela se torna diametralmente mais difícil. As diferenças vão ficando mais marcadas e insuportáveis”, reflete.
A especialista recorre ao que Freud definiu como “narcisismo das pequenas diferenças” para analisar o fenômeno. “Quando pensamos em ‘padrões de corpos’, a diferença precisa ficar apagada, ou cortada por meio de uma cirurgia. O mote é quase esse: ‘Vamos ficar parecidos para não ter que lidar com diferenças, assim deve ficar mais fácil existir’. Só que é bem o contrário, quanto maior a intolerância com a diferença, mais dificuldade temos de viver no mundo. É impossível padronizar corpos, então me parece ser mais saudável deixar cair essa imposição”, propõe Vanessa.
A escritora e psicanalista Jane Patrícia Haddad segue a mesma linha. “As diversidades são lindas, os corpos são únicos e não apenas embalagens de produtos humanos, somos muito mais do que isso. Sustentar-se hoje, quebrando tendências e padrões, é meu objetivo”, conta. Psicóloga e fundadora da Consultoria Cocriar, Kamilla Santana corrobora.
“É urgente haver a compreensão de que, se uma pessoa quer fazer um procedimento estético, ela deve ser respeitada, e, se uma pessoa não quer alterar a beleza natural do seu corpo deverá ser respeitada da mesma forma. Discorrer críticas a alguém que tem autonomia sobre seu próprio corpo não contribui para uma sociedade mais saudável”, finaliza Kamilla.