Na ficção, a história é outra. Em “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, romance de Jorge Amado (1912-2001) levado ao cinema com Sônia Braga, José Wilker e Mauro Mendonça nos papéis principais, a protagonista vive entre o assanhamento do falecido ex-marido e o recato do atual, numa narrativa fantástica que torna possível o inverídico. 

Em “Jules e Jim”, filme do renomado diretor francês François Truffaut (1932-1984), ícone da Nouvelle Vague, é a atriz Jeanne Moreau quem conquista o coração de dois amigos ao mesmo tempo. Em ambos os casos, temos uma mulher mantendo relacionamentos com dois homens sem que eles, necessariamente, saibam desse fato.

Na realidade, tem acontecido o inverso, ao menos aparentemente. Grupos virtuais em redes de relacionamento na internet têm sido criados por mulheres com um objetivo claro: oferecer informações sobre homens com quem elas se relacionam, para, entre outras coisas, descobrir e se precaver de estar mantendo um namoro ou noivado com alguém já comprometido. 

“Vivemos numa era em que as pessoas estão com medo de se envolver, por vezes, buscando caminhos para evitar frustrações. Na expectativa de uma relação monogâmica, baseada no amor romântico cuja premissa é a fidelidade, essas mulheres acreditam que, ao buscar o máximo de informações, investigar a vida ou até mesmo recorrer a estes grupos, seria uma maneira de se resguardar”, opina a sexóloga e psicóloga Bruna Coelho, que procura compreender as motivações do gesto.

Embora não seja exatamente uma novidade, a razão de esse tipo de investigação ter migrado para o ambiente virtual revela uma tendência forte da contemporaneidade. Antigamente, era comum, principalmente nas cidades do interior, que as pessoas afixassem cartazes nas paróquias ou publicassem notas em jornais avisando a comunidade de um noivado, o que também acontecia com leituras nas missas de maior fluxo de fiéis, geralmente durante três semanas consecutivas. 

Caso ninguém se manifestasse contra após esse período, o matrimônio acontecia. No entanto, vez ou outra se descobria que o pretenso noivo já era casado, de papel passado e tudo, com outra mulher, especialmente quando se tratava de “forasteiros” vindos de outras plagas.

Detetives em ação

De acordo com uma pesquisa da Consultoria em Marketing Digital Conversion, os brasileiros permanecem, em média, de três a quatro horas nas redes sociais. Em seu consultório, a reclamação sobre o tempo gasto no celular é “constante e crescente”, relata Bruna. Aqui, pode estar uma das pistas mais preciosas para compreender a vontade de investigar o paquera na atualidade. As redes, na avaliação da sexóloga, proporcionariam tanto o poder da curiosidade quanto o perigo da tentação, o que não seria exatamente um privilégio do ambiente virtual. 

“Ao passo em que você compartilha seus interesses e interage em ambiente  virtual, certamente encontrará pessoas diferentes, com interesses em comum. O desconhecido é sempre um terreno fértil para o desejo. Tanto tempo e exposição culminam em visualizações, interações, curtidas, comentários, e, de uma interação despretensiosa, pode surgir atração física e sexual, e, consequentemente, relações extraconjugais…”, avalia Bruna.

Por serem mulheres que estão criando esses grupos de compartilhamento de informações sobre homens na internet, a psicóloga recorre ao fator cultural, embasado em séculos de machismo e patriarcado, e entende a postura como uma espécie de reação para se proteger de atitudes desleais e até violentas. 

“Majoritariamente, a cultura de relacionamentos extraconjugais ocorre mais por parte dos homens”, acredita Bruna, que, ao mesmo tempo, observa um comportamento “envergonhado” dos homens quando são eles as vítimas da traição, o que impediria a criação desse tipo de grupo por parte da ala masculina. 

“Homens tendem a lidar com assuntos relacionados à traição de forma silenciosa, sem se expor, considerando os termos pejorativos que são cunhados nessas situações. Este pode ser um motivo pelo qual os homens não falam abertamente”, diz ela, notando que, para o homem traído, a alcunha é de “corno”.

Do ponto de vista das mulheres, estaria em jogo a própria integridade física. Nesse caso, a troca de informações serviria não apenas para descobrir algo do atual amante, como também para ficar ciente dos riscos envolvidos em se relacionar com um futuro pretendente. 

Vidas em risco

No ano passado, o Brasil registrou 1.463 feminicídios, uma alta de 1,6% em relação a 2022, numa curva tristemente ascendente desde o início da série histórica, em 2015. “Falar sobre comportamentos inadequados dos homens é protetivo para outras mulheres e denota o desenvolvimento de uma consciência coletiva sobre a violência de gênero”, afiança Bruna, que observa uma mudança cultural nesse sentido.

Segundo ela, a frase que se transformou em ditado, tal sua incorporação social, “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, hoje estaria absolutamente ultrapassada diante da consciência quanto aos números aterradores de atentado à vida das mulheres, sobretudo por parte de seus companheiros. Logo, para além de uma reação frívola ou enciumada, o cerne desses grupos seria a união em torno de uma proteção comum. 

“É de suma importância que toda a sociedade se una para o enfrentamento da violência de gênero. Publicizar e alertar outras mulheres demonstra empatia e cuidado, e é uma quebra desse paradigma de normalização de abusos que vivemos”, conclama a psicóloga. O papel das detetives aqui seria, na verdade, acolher.

União feminina é tentativa de mudar paradigma

Durante muito tempo cultivou-se no seio da sociedade ocidental, sob a vigência do patriarcado, a lendária rivalidade feminina, que prejudicava as mulheres e mantinha intacto o status quo masculino. As consequências eram notadas, por exemplo, nas cenas de peças de Nelson Rodrigues (1912-1980), como “Os Sete Gatinhos” e “Perdoa-me por me Traíres”, recolhidas de sua ferina observação da realidade. A mulher traída não culpava o marido, mas aquela que o seduziu, num eterno retorno ao pecado original cometido por Eva, que, tentada pela serpente, entregou-se ao prazer quando abocanhou a maçã.

Sexóloga e psicóloga, Bruna Coelho entende que há mudanças em curso na sociedade em busca de mais igualdade, representadas, inclusive, pelos grupos virtuais criados por mulheres para compartilharem informações sobre homens, o que denotaria uma histórica união. No entanto, ela ainda avalia essa transformação da rivalidade em parceria com ressalvas. 

“É tudo muito recente. Ainda não podemos afirmar que, de fato, as dinâmicas das relações mudaram em virtude desses grupos. Mas o fato de comentar, demonstrar apoio e solidariedade nessas situações revela união por parte das mulheres e abre uma porta para estabelecer novos paradigmas de relacionamento, quebrando esse status que foi construído, fruto de anos de patriarcado”, conclui Bruna.