Rosiane Reis chegava em casa do trabalho e, como ainda tinha que dar conta das tarefas domésticas, a maneira que viu para entreter a filha Gabriela, de 2 anos e 6 meses, era deixá-la usar o celular. “É mais fácil para os pais dar o aparelho para a criança, pois ela vai ficar quieta ali, boazinha, como os pais querem, como um robô dentro de casa. Mas aí a criança não vai mais interagir com a família, não vai brincar, não vai se comunicar. Vira uma criança apática”, registra a especialista em telas, escritora e palestrante.
Ela lembra que, naquela época, não tinha conhecimento sobre o impacto que o celular estava gerando no desenvolvimento de Gabriela. “Eu comecei a ver que ela tinha se tornado uma criança agressiva, que falava só gritando e cheia de ansiedade. Era um comportamento que vinha do uso excessivo das telas. Aí decidimos zerar, e ela começou a melhorar”, recorda Rosiane, que, a partir dessa experiência, deixou o trabalho num escritório de administração para virar uma “especialista em telas”.
Com dois livros que abordam o tema e uma agenda de convites para palestras, Rosiane sempre é questionada sobre qual a melhor idade para se permitir o acesso a celulares e redes sociais. Uma questão que ganhou maior repercussão após seis mães capitanearem, no Brasil, a campanha Desconecta, que veta o uso do aparelho antes dos 14 anos, enquanto a entrada em redes sociais só seria permitida após os 16. Uma “briga” que tem mobilizado também especialistas e escolas.
“Não acho interessante, não. Acho essencial”, afirma a neuropsicóloga Licia Assbu, autora da publicação “(Des)conecte-se: Como Se Conectar com o Seu Filho para Ele Se Desconectar das Telas” (Edições 70). “Já estamos colhendo os déficits desse uso indiscriminado, que estão cada vez maiores. Pela primeira vez, a taxa de ansiedade de jovens e adolescentes passou a de adultos. Por quê? O que está levando a isso? A resposta está aí”, alerta, ao falar de uma geração que já nasce praticamente plugada.
“Deixar o seu filho no celular é a mesma coisa que deixá-lo na rua. Você está deixando-o numa rua sem supervisão, em que ele terá acesso a qualquer tipo de conteúdo”, compara Licia. Rosiane faz outra associação, com a dependência de drogas. “(Tirar o celular) é um processo que não é fácil. É como tirar uma criança de um grau de vício, podendo imaginar o seu filho como um dependente químico. O vício nas telas já é, aliás, comparado com o vício em drogas”, salienta a especialista.
Licia é defensora de uma lei para restringir o uso de celulares, fazendo uma analogia com a evolução dos automóveis. “Quando se começou a usar carro, não existia cinto de segurança. Não precisava. Até o momento em que se viu o risco que era e acabar virando lei. Celular é isso. A gente não sabia (de seus perigos), não havia esse mundo das telas, da internet. Quando aprendemos a usar, percebemos que estava na hora de colocar esse ‘cinto de segurança’”, sublinha a neuropsicóloga.
Mas Licia avisa: “Precisamos de leis e, acima de tudo, pais. Não é só proibir. Enquanto pais, temos uma responsabilidade ainda maior, porque é muito fácil substituir a relação pelo uso do celular. Quero sair para almoçar fora e entrego um celular na mão do meu filho para que eu possa ficar almoçando tranquilamente, conversando com meu marido, porque meu filho está entretido. Só que estou perdendo uma oportunidade de me relacionar ali enquanto família, de estarmos todos juntos”.
“Ao mesmo tempo em que o celular nos leva para longe da relação, o contrário também é verdadeiro. Quando a gente investe em se relacionar, em estar presente e conversar com nossos filhos, em ter esse tempo de qualidade e de criar essa conectividade com eles, não só o celular vai entrar mais como coadjuvante, sendo mais fácil colocar esses limites, como também em qualquer coisa que acontecer ali você é a referência para seu filho. Se ele tiver alguma dúvida, ele irá até você. Isso é essencial”, destaca Licia.
Criança precisa ter uma rotina
“Eu sou a prova de que é possível fazer essa redução”, assinala Rosiane. “Minha filha hoje tem oito anos e tivemos dois momentos dela viciada em telas – uma vez no celular e outra vez na TV. Mas consegui mudar esse cenário na minha casa. Não é fácil. Somos a primeira geração de pais que os filhos já nascem nesse mundo digital. Muitos pais não têm essa consciência e o conhecimento do limite. Até quando é saudável esse uso? Até quando eu posso deixar o meu filho usar, sem impactar a saúde psicológica e física?”.
“Zerar” o acesso ao celular não é a saída, defende Rosiane. “O que as famílias precisam é ter esse olhar para o tempo, para o conteúdo, como e onde está sendo acessado. Sou a favor de um uso consciente, saudável e equilibrado”, sugere. Ela segue a orientação da Associação Brasileira de Pediatria, que estipula o tempo de telas – nenhum, para crianças de zero a dois anos; uma hora por dia para quem tem de dois a cinco anos; duas horas/dia (seis a dez); e três (de 11 a 18 anos).
“A criança precisa ter uma rotina, sabendo que terá outras atividades que também serão essenciais para o desenvolvimento dela. É preciso ter uma boa qualidade de sono, um horário certo para dormir, para as refeições e para as tarefas escolares, tempo de leitura e para brincar ao ar livre, além praticar alguma atividade física. Quando a criança tem uma rotina, o tempo de tela automaticamente diminui. É importante também fazer as crianças participarem das decisões que envolvem a vida dela, porque assim elas se sentem ouvidas”, observa Rosiane.
Para Licia Assbu, o acesso à rede social não deve acontecer antes de 14 anos. “Criança com rede social, jamais. É um pedido que faço encarecidamente a todos. Quanto mais puder adiar essa entrada, adie. Não existe nenhum motivo para que elas tenham que estar lá tão cedo. Pense que é um cérebro em formação e que a adolescência já é um período em que cresce essa necessidade de validação externa, de fazer parte do grupo - e estar numa rede social é pior ainda. O dano é muito grande. Infelizmente a gente já colhendo esses danos, vendo os jovens mais ansiosos e as taxas de depressão e suicídio crescendo”, adverte.
Limitação também no âmbito escolar
A neuropsicóloga Licia Assbu observa que muitos diagnósticos de transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) em crianças estão, na verdade, relacionados ao uso de celulares e redes sociais. “Elas têm os sintomas de TDAH, mas causado pelo excesso no uso de telas. A criança apresenta dificuldades de concentração, por exemplo, só que ela não possui o transtorno do neurodesenvolvimento”, pontua.
Para ela, as escolas têm papel essencial para a limitação do uso de celular. “Algumas que fizeram isso já estão colhendo os resultados. Ambiente escolar não é lugar de celular. Eu sempre digo e repito: o papel da escola vai muito além de transmitir conhecimento. Um dos principais papéis é trabalhar as habilidades socioemocionais da criança. É lá que ela irá se relacionar a maior parte do tempo com os pares. É lá que vai ter os conflitos que precisa resolver”.
Na escola, de acordo com Licia, o aluno irá criar a maior parte do repertório das habilidades emocionais. “A criança que ficar no celular, que tem os recursos para prender a atenção dela, agindo no cérebro como uma droga muitas vezes, está abrindo mão de se relacionar, que é o principal eu ela tinha que estar fazendo na escola. É muito prejudicial. Fora o próprio conhecimento, que acaba sendo prejudicado por esse excesso”, registra.
Licia destaca que, em pesquisas recentes, já ficou evidenciado que escolas que proibiram o uso de celular estão com desempenho acadêmico melhor. Em breve, acredita, os pais já estarão reorientando o destino escolar dos filhos nesse sentido. “ Às vezes o pai não vai (fazer matrícula) nem pelo uso (limitado) do celular, mas pelo desempenho acadêmico, que certamente é melhor”, prevê.
ENTREVISTA / RENATA FIALHO
Especialista em educação socioemocional
Como você avalia essa campanha para restrição do uso de telas? O limite de 14 anos é o mais adequado (para restringir celular)?
Primeiramente, é importante deixar bem claro o que realmente é a restrição ao uso de telas no contexto escolar. Hoje, o uso de telas por crianças e adolescentes está diretamente ligado às redes sociais e jogos. Há uma grande exposição de imagens das próprias crianças e adolescentes, bem como uma preocupação com os jogos, principalmente aqueles de apostas e desafios. Muitas pessoas dizem que a escola é a grande culpada por inserir as telas na vida dos estudantes devido à pandemia de Covid-19. No entanto, foi a única maneira de proporcionar a continuidade dos estudos e a aquisição do conhecimento acadêmico durante esse período. Todos os estudantes da educação básica, da educação infantil ao ensino médio, necessitam de ajuda e uma reeducação quanto ao uso de telas. Quando se fala em restringir o uso de celular nas escolas, a questão está relacionada às condutas, valores e à segurança das crianças e adolescentes.
As novas gerações cada vez mais se conectam cedo a celulares e redes sociais. Com isso impacta os alunos nas escolas?
A pergunta é: quem compra o celular para a criança e o adolescente? A família compra o celular para o filho com o intuito de proteção, saber a localização, ter um meio mais rápido de comunicação e atender às demandas essenciais diante da rotina entre pais e filhos. O grande problema está nos demais acessos que o celular permite. A cada ano, os estudantes estão ganhando das famílias celulares modernos com acessos diversificados, e isso está completamente descontrolado. O grande ponto está nesse descontrole. Sempre vejo nas redes sociais várias pessoas com depoimentos dizendo que a escola não muda, que é sempre a mesma coisa, e que o celular é mais atrativo. Pois bem, tenho 29 anos de experiência dentro de escolas públicas e privadas. As escolas estão evoluindo constantemente. Estudar requer esforço para pensar, refletir e agir. Professores estão cada vez mais engajados em proporcionar uma construção do conhecimento teórico e prático. O que os jogos e redes sociais proporcionam aos estudantes? Facilidades. Não gostou? Cancela. Se irritou? Bloqueia. O mundo das telas não requer esforço. Tudo é um simples passar o dedo.
Você vê um movimento nacional, por parte das escolas, para restrição de celular? Ou é algo mais pontual ainda?
Há um movimento mundial de conscientização sobre os impactos do uso de celular por crianças e adolescentes. Estudos científicos apontam questões seríssimas sobre o uso excessivo desses dispositivos, evidenciando que não prejudica apenas o conhecimento acadêmico, mas também o básico do ser humano: a convivência. Isso vale também para os adultos. Vamos pensar na estrutura familiar que mudou bastante. Antigamente, as famílias eram compostas por quatro a sete filhos. Hoje em dia, estamos observando um declínio nas taxas de natalidade. Se antes a família era uma constante interação, hoje isso nem sempre acontece. Para muitas crianças e adolescentes, a escola é o único espaço de convivência. Lá, eles têm a oportunidade de aprender a construir amizades, vencer desafios e se preparar para o mundo. A escola, portanto, desempenha um papel crucial na socialização e no desenvolvimento de habilidades interpessoais.
Quais os métodos e cuidados para implantação dessa restrição nas escolas?
Infelizmente, vivemos em uma cultura onde as coisas apenas se efetivam quando existem leis. Na verdade, se algo não faz bem, deveria haver uma mobilização para a tomada de consciência e ação. Isso envolve a construção da moralidade do indivíduo. É essencial que as instituições de ensino e as famílias colaborem para garantir que o uso de telas seja equilibrado e não prejudique a formação integral dos estudantes. Para isso, é necessário um trabalho específico com todos os envolvidos: estudantes, famílias e os profissionais do contexto escolar. A escola desempenha um papel importantíssimo na construção de um plano de conscientização para a ação. Isso necessita de investimentos em qualificação de todos os envolvidos, principalmente as famílias e os estudantes. Para quem está atuando dentro das escolas, é claro que há reais necessidades e temos dados científicos precisos para embasar um plano de conscientização. No entanto, as famílias e os estudantes precisam desenvolver habilidades para que o trabalho seja efetivo. A escola pode liderar essa iniciativa promovendo workshops, palestras e atividades que envolvam todos os membros da comunidade escolar. O objetivo é criar um ambiente onde todos compreendam os riscos do uso excessivo de telas e aprendam a usá-las de maneira saudável e produtiva. Além disso, é crucial que a escola ofereça alternativas de interação e aprendizado que não dependam exclusivamente da tecnologia, incentivando atividades que promovam a socialização e o desenvolvimento de habilidades interpessoais. Com uma abordagem colaborativa e consciente, é possível construir um ambiente escolar mais equilibrado e saudável para todos.
Essa restrição nas escolas se refletirá dentro de casa, de alguma forma?
Na verdade, é o contrário. Se as famílias agirem dentro de casa, o resultado refletirá no espaço escolar. Ao comprar o celular e oferecê-lo para a criança e o adolescente, todos os problemas começam dentro de casa e refletem na escola. Por que estimular o uso do celular dentro de casa? Crianças e adolescentes precisam conviver com os adultos responsáveis. Eles precisam adquirir habilidades essenciais como regras, limites, rotina, organização, cuidado e responsabilidade. Devem aprender a cuidar de si mesmos e dos espaços básicos, como o próprio quarto. Assim, desenvolverão habilidades para os demais espaços e lugares em que viverão. A família é a base na construção do ser humano. A escola será o primeiro lugar da sociedade onde eles irão praticar o que aprenderam na base. Portanto, é crucial que as famílias assumam a responsabilidade de limitar o uso do celular e promover um ambiente onde as crianças e adolescentes possam desenvolver essas habilidades fundamentais. É dentro de casa que se estabelece a base para a formação de hábitos e comportamentos. Se as famílias impõem limites claros e promovem atividades que incentivem a interação e o aprendizado, as crianças e adolescentes estarão mais preparados para enfrentar os desafios da vida escolar e, posteriormente, da vida adulta. As famílias precisam estar atentas ao uso do celular e às suas implicações, incentivando o diálogo, a convivência e o engajamento em atividades construtivas. Dessa forma, as habilidades adquiridas em casa se refletirão positivamente na escola e em outros ambientes sociais. Com a base sólida estabelecida pela família, a escola pode complementar essa educação, proporcionando um ambiente onde os valores e habilidades aprendidos em casa sejam reforçados e ampliados. A colaboração entre família e escola é essencial para garantir o desenvolvimento integral dos estudantes. Quando ambos trabalham juntos, cada um cumprindo seu papel, o impacto positivo na vida das crianças e adolescentes é significativo e duradouro.