Aos 36 anos, o funcionário público Gustavo Silva enumera “respeito, educação, liberdade, carinho e amor” como pilares de um relacionamento saudável. Mais experiente, o aposentado Antônio Machado, de 77 anos, adiciona a palavra “entendimento” à receita. Para a auxiliar de dentista Gleicinara Lopes, de 46 anos, “diálogo é a palavra-chave”. Stephanie Cateline, de 32 anos, que está desempregada, acredita que “a confiança é a base de tudo”. 

O aposentado Fernando Severino, de 71 anos, recorre a um ditado para afirmar a força da parceria e da mútua compreensão: “É conversando que a gente se entende”, declara. Costureira, Ana Mirtes, de 33 anos, valoriza um companheiro “que ajude a mulher em tudo, lavando louça, arrumando a casa”. E o auxiliar administrativo Hugo Felipe, aos 20 anos, retoma palavras que surgiram no início da prosa ao definir um relacionamento saudável: “Carinho e respeito”.

De alguma maneira, todas essas percepções convergem com a análise da psicóloga Marcelle Primo sobre a natureza do chamado relacionamento saudável, explicitando que as pessoas compreenderam a teoria acerca desse tema na prática. “O primeiro ponto para se considerar um relacionamento saudável é o desejo da pessoa estar em um relacionamento. Depois, a ‘escuta’ de si e também do outro envolvido quanto aos encantamentos e fantasias, ao que se almeja, planejamentos para o futuro, projetos para o agora e a disposição à diferença”, destaca a psicóloga, para quem,  “a partir disso, temos um embrião da condição para as pessoas serem sujeitos com desejos e frustrações umas para as outras, sem o mundo acabar por causa disso”. 

Oposto

Ela pondera que “não é possível viver em função do outro sem adoecimento”, deixando claro que um relacionamento saudável não pode ser confundido com dependência emocional. “É preciso amar e ser amado, mas também trabalhar, ter hobbies, querer se desenvolver, e por aí vai”, complementa Marcelle.

Para tornar ainda mais compreensível a explicação, a especialista se utiliza do exemplo contrário, ao abordar os sinais de um relacionamento tóxico, doentio. “Temos dois modos de entender esses sinais. O primeiro são os sinais de quem participa desse tipo de relação. Os mais clássicos são a perda da vontade de fazer coisas que antes eram prazerosas, desânimo, desmotivação, tristeza, ansiedade e medo”, informa Marcelle. 

Ela ressalta a importância de “prestar atenção se tais sintomas ocorrem ‘sem motivo aparente’ ou por ‘causa desconhecida’, pois é difícil reconhecer que a pessoa com a qual você tem um relacionamento é quem lhe causa esse mal-estar. Muitas vezes, quem percebe isso se nega a querer ter essa notícia”, constata a psicóloga, sublinhando um aspecto de negação muito comum em relacionamentos tóxicos. A outra maneira de se perceber nesse lugar desagradável seria “a maneira como você é tratado na convivência com o par”. 

“Nas relações disfuncionais são constantes as ameaças, o excesso de controle, o ciúme excessivo, o descontentamento com promoções no trabalho e as realizações pessoais, o afastamento progressivo e silencioso de familiares e amigos, as constantes manipulações que visam ao desequilíbrio emocional, e, claro, a forma violenta de se comunicar que humilha e provoca sofrimento”, pontua Marcelle. 

Diferenças

É fundamental compreender que “saudável” não é sinônimo de “perfeição”. Logo, eventuais discussões e discordâncias são parte de todos os relacionamentos da vida humana. Mas é preciso se atentar às nuances. “Conflitos saudáveis são aqueles que levam à reflexão, ao reconhecimento do erro, ao pedido de desculpas e à busca de soluções. Não necessariamente nessa ordem”, observa Marcelle. 

Por outro lado, é possível identificar um relacionamento tóxico quando essas discussões apresentam “um caráter claro de demonstração de poder, punição, cerceamento da palavra, coação, opressão, demonstração de reprovação e discordância, implicação de erro e responsabilidade à vítima”. “Esse tipo de discussão é uma estratégia para a manutenção da vítima no silêncio, pois, assim, não é possível romper o ciclo de abusos. Se ninguém sabe o que está acontecendo, não há nem possibilidade de a vítima ser orientada a buscar modos de sair desse relacionamento”, sustenta a psicóloga.

Nos dois casos, o próprio corpo emite sinais que encerra quaisquer dúvidas. “A comunicação saudável é realizada com o tom ajustado à situação vivida. É comum que o corpo esteja voltado para a pessoa com a qual se fala e os olhos estejam alinhados no mesmo plano. Uma conversa saudável não leva ao desespero e a ideação de desistência da vida. A comunicação tóxica é realizada com diferenciação de planos, como, por exemplo, a vítima estando sentada e o abusador em pé. Os olhos não se encontram no mesmo plano, há gritos, choro, ameaça de ruptura por qualquer motivo e críticas disfarçadas de elogios. Cabe ressaltar a presença costumeira de um tom irônico que torna impossível, em longo prazo, a diferenciação entre aquilo que é ou não, com a intenção proposital do duplo sentido”, salienta Marcelle. 

Em busca de um relacionamento saudável

Para atingir o sonho de um relacionamento saudável, baseado em valores como amor, respeito, carinho, cuidado e confiança, o primeiro passo é abandonar aquele relacionamento que vai na via contrária. Segundo a psicóloga Marcelle Primo, a primeira ação para alcançar tal objetivo é “comunicar para alguém o que está acontecendo”.

“É pela quebra do silêncio que ressurge a vida. A segunda atitude é buscar abrigo em outro lugar, como casa de parentes e amigos, e não permanecer sob controle do abusador. A terceira é procurar, de preferência, por tratamento profissional com psicólogo e psiquiatra”, afirma a especialista. 

Se a pessoa não tiver condições materiais de arcar com os custos de uma consulta desses profissionais, ela indica grupos de apoio como o GAMVA BH (Grupo de Apoio a Vítimas de Abusos Sexuais). “A ideia central do tratamento é que a vítima não se culpe pelo ocorrido, que busque criar outros vínculos, aumente o repertório ao reagir a abusos e não precise, de preferência, nunca mais mais viver um relacionamento tóxico”, enfatiza Marcelle.