Apresentada como personagem “esquisitona” na série Sex Education, da Netflix, Lillian “Lily” Iglehart, uma das protagonistas da 1ª e 3ª temporada, certamente encontraria muita gente com interesses em comum no Brasil.

Na produção, a adolescente facilmente se perde em divagações que envolvem, a um só tempo, sexo e criaturas alienígenas. Fantasias que ela habilidosamente transforma em hentais, como são chamados os mangás e animes com conteúdo pornográfico. Os hábitos são tratados, na série, como peculiares, beirando o esquisito.

Fora da trama, porém, o interesse por sexo entre personagens imaginários em desenho está longe de ser incomum. Ao contrário, ele é bastante popular entre brasileiros e brasileiras, como mostra a lista de termos mais buscados na plataforma de vídeos adultos Pornhub em 2024. 

O ranking é liderado, com folga, pela expressão “hentai”, que está no pódio das mais buscadas desde 2017. A título de comparação, “brasileira”, segundo tópico mais pesquisado, tem menos da metade do volume de buscas. Por sua vez, “anal”, que costuma ser muito associado ao universo da pornografia, só vai aparecer em quarto lugar.

Detalhe que, ainda orbitando o universo desses desenhos eróticos, na 8ª e 9ª posição da listagem aparecem “anime” e “cosplay”, respectivamente. Ou seja, dos dez temas que mais atraem audiência, três estão associados ao tipo de fantasia que diverte Lily em Sex Education.

O designer gráfico Igor Chagas, 28, que atualmente trabalha como gerente de marketing, engrossa o caldo dos que se juntariam à personagem da série em sua predileção pelos hentais. “Sempre assisti muito anime, desde criança. E, conforme fui envelhecendo, comecei a ver pornografia. Daí, uma coisa levou a outra”, resume ele, que também já se viu no papel de criador desses conteúdos.

“Comecei a fazer esses desenhos influenciado por artistas que eu seguia nas redes sociais e que também estavam fazendo esse tipo de conteúdo. Então, fui pegando como referência algumas fotos de produtores de conteúdo adulto que eu gostava e, a partir delas, fazia minhas criações”, recorda, acrescentando que realizava todo esse processo por meio de aplicativos, em um iPad.

Faz um tempo que Chagas interrompeu essa produção, como alguns amigos seus, que não vêm muita perspectiva de monetização desses conteúdos. “Eles sempre comentam que costumam faturar mais com a audiência de fora”, situa. E é por conta dessa experiência que ele reconhece surpresa ao saber que o tema atrai tanta audiência no país. “Imaginava que, no Brasil, o consumo fosse menor”, admite.

E o especialista em marketing e design tem seus palpites sobre as razões que podem estar por trás do fenômeno: “Penso que deve ser reflexo dessa crescente onda de animes, que se popularizaram, pela facilidade de acesso, com os serviços de streaming”, cita. E aqui vale lembrar que a própria Netflix, plataforma mais popular de streaming, tem uma aba dedicada aos desenhos japoneses.

Outro dado a ser considerado, aponta, são os games, que angariam um sem-número de jogadores, que também podem se aproximar do universo do hentai após uma maior familiaridade com personagens desses jogos. “Acho que, como no meu caso, uma coisa leva a outra”, compara.

Representação em desenho funciona como atenuante moral

A psicóloga, psicanalista e sexóloga Laís Ribeiro concorda, em partes, com as análises de Igor Chagas.

“Freud tem um livro interessante, que trata de um conceito que diz de um estranho que é familiar, alguma coisa que atrai e repele simultaneamente. A gente pode pensar nisso para pensar nesse fenômeno: o hentai pode explorar visualmente aquilo que nos é estranho, por ser um desenho, pode até se distanciar do pornô em si, ao mesmo tempo que nos comunica algo familiar, algo que tem a ver com os jogos que jogamos, com os mangás que lemos, com os animes que assistimos”, examina.

Esse possível afastamento do que imaginamos como pornografia, com atores humanos interpretando diante das câmeras ou em filmagens caseiras, também é um componente a ser considerado para o sucesso desses desenhos eróticos. Ocorre que, ao se distanciar dessa imagem tradicional do pornô, cercada de tabu, sendo cultural e moralmente vista como imprópria, os hentais passam a ser uma possibilidade vista como mais aceitável, contornando um eventual desconforto, em termos de peso de consciência, associado ao consumo de material adulto.

Outra hipótese aventada por ela, que vê a explosão de popularidade da modalidade com mais curiosidade do que surpresa, tem a ver com a liberdade narrativa e criativa de uma animação ou de uma ilustração, que se abre para um amplo leque de possibilidade de temas, estilos e conteúdos.

“A coisa fica muito amplificada e, por isso, alcança um público mais abrangente”, menciona, refletindo que a categoria não é buscada apenas pelos homens, geralmente vistos como os principais consumidores de pornografia, mas também por mulheres, alcançando ainda pessoas de diferentes orientações sexuais.

Por fim, a sexóloga lembra que os hentais permitem o acesso a fantasias que podem, muitas vezes, ser impensáveis e impraticáveis na vida real, cuja realização está restrita exclusivamente à ficção.

“Quando a gente vê os temas dos vídeos de hentai, vemos uma gama extensa de possibilidades, das mais comuns às mais extremas”, lembra, indicando que, por se tratar de um desenho, aquela fantasia acaba ficando exatamente nessa gaveta: a da fantasia, do mundo imaginário, que não pode chegar ao real – o que funciona como um atenuante moral para o acesso desses conteúdos.