As disputas entre irmãos pela aprovação e, quem sabe, a predileção dos pais já foram e continuam sendo retratadas na literatura, no cinema e na televisão, para ficar em três universos. Um dos contos de fadas mais populares, com versões registradas desde o século IX, na China, Cinderela, por exemplo, narra a saga de uma mulher que, órfã de um comerciante rico, é criada por sua madrasta, mãe de outras duas mulheres. Das três filhas, a enteada – que na versão italiana é chamada de Gata Borralheira – é a preterida, o que lhe custa uma série de intempéries.

Como arquétipo, a personagem segue alimentando um sem-número de novas histórias. Aparece inclusive em “Tudo É Rio”, premiado romance de estreia da escritora mineira Carla Madeira, que também apresenta uma personagem que leva para a vida as cicatrizes de ter se sentido rejeitada pela tia que a acolheu após a morte de seus pais, mas, mesmo longe de ser uma megera, deixou nela a sensação de não ter sido amada – uma emoção que vai, pouco a pouco, envenenando sua personalidade. Uma perspectiva que também aparece nas narrativas bíblicas, quando a inveja de Caim, ao se perceber preterido em relação ao irmão, Abel, motiva o mais trágico fratricídio registrado no Antigo Testamento.

As histórias, todas elas, por um viés ou outro, funcionam como uma alegoria sobre como, no seio familiar, o favoritismo de uma das partes não é sem consequência – ainda que a predileção por um dos filhos seja um fenômeno absolutamente comum, como sugerem pesquisas que investigam as relações familiares.

Um dos estudos mais recentes sobre o tema, uma meta-análise de 30 artigos científicos que abrangem um universo de quase 20 mil pessoas, indicou que o favoritismo parental costuma beneficiar as filhas e as crianças vistas como agradáveis ​​e esforçadas. Realizada pela Associação Americana de Psicologia, a pesquisa considerou, além do gênero e ano de nascimento, características como temperamento e traços de personalidade, correlacionando os achados ao favoritismo parental. 

Os resultados indicaram que, tanto para os pais quanto para as mães, as meninas e as crianças organizadas e responsáveis tendiam a ser vistas, nos Estados Unidos, como favoritas.

Outro estudo, conduzido por pesquisadores ligados à Universidade da Califórnia, acompanhou, durante três anos, 384 famílias com adolescentes irmãos e constatou que 70% dos pais e 74% das mães tratavam um dos filhos de forma preferencial. Neste caso, os achados foram diferentes e o recorte de gênero ficou óbvio: enquanto os genitores favoreciam a ala masculina da prole, as genitoras favoreciam a ala feminina. Uma década depois da publicação, o Centro de Pesquisas Familiares da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, buscou apurar possíveis impactos relacionados a essa diferenciação de tratamento. A conclusão é que a sensação de que uma das partes é favorita aparecia como fator relevante para o distanciamento e ressentimento entre irmãos na fase adulta.

Neste aspecto, os dois levantamentos chegam a constatações convergentes, pois a nova publicação também apontou que os filhos menos favoritos tendem a ter pior saúde mental e relacionamentos familiares mais difíceis.

Preferência parenteral deixa impactos

O psicólogo Rodrigo Tavares Mendonça, especialista em psicoterapia de famílias e de casais, reconhece que a percepção de que um dos filhos é o predileto da família costuma aparecer, direta ou indiretamente, na rotina de atendimentos clínicos. “Muitos conflitos entre pais e filhos e entre irmãos passam pelo conteúdo da preferência dos pais por um dos filhos, seja real ou imaginária. E muitos problemas vistos como individuais, como a ansiedade ou a depressão, também podem aparecer como uma consequência implícita desse problema”, pontua.

Para a criança que se sente preterida, uma consequência comum é o surgimento aparentemente sem explicação de atitudes de rebeldia e de mau comportamento. “A criança começa a desafiar os pais e o irmão que ela vê como preferido deles”, explica. “Ela pode se tornar agressiva, demonstrando raiva com facilidade, e pode também se apresentar ansiosa, com agitação psicomotora, insônia e dificuldade de concentração, ou depressiva, demonstrando uma tristeza também aparentemente sem explicação e uma falta de motivação para fazer as atividades diárias, como arrumar o quarto e ir para a escola”, aponta o psicólogo. 

A timidez excessiva também é um sintoma comum. “A criança pode ficar muito introvertida, sentindo-se inferior às outras crianças”, completa, inteirando que a maioria das consequências são passageiras ou produzem danos leves, mas se não tratadas a criança pode crescer com uma grande possibilidade de desenvolver um transtorno mental, um abuso de álcool ou outras drogas ou uma autoestima baixa no futuro.

A psicóloga clínica Telma Cunha concorda. “Sabemos que, se não for algo trabalhado, o problema vai gerar conflitos familiares, mas não é só isso. Essa sensação de inferioridade vai perseguir essa pessoa no futuro, de forma que ela pode se sentir incapaz para as relações afetivas ou mesmo profissionais”, pontua. Detalhe que o tratamento desigual pode ser prejudicial inclusive para a parte que aparece como favorita. Essa criança pode se tornar especialmente cobrada, uma vez que seus pais podem depositar nela uma grande carga de expectativas. Além disso, muito protegida em casa, ela pode se frustrar diante de um mundo em que, de predileta, passa a ser só mais uma na multidão.

Real ou imaginário. “É importante dizer que os sintomas podem surgir mesmo que a preferência não exista na realidade, basta que se produza no imaginário da criança”, pondera Mendonça. “Acontece que um filho doente ou com mau comportamento pode demandar mais atenção dos pais, e isso ser interpretado de forma equivocada pelo irmão. É comum que um filho possa ser visto como mais vulnerável pelos pais, como um filho que foi muito doente na primeira infância, e essa percepção de vulnerabilidade aumentada levar os pais a superprotegê-lo. Essa superproteção pode desencadear no outro filho a percepção de ser preterido”, avalia. 

Amar cada um à sua maneira

“Os pais geralmente negam a preferência por um dos filhos, costumam dizer que o amor é o mesmo para todos. Acontece que a preferência pode acontecer não por diferença no tamanho do amor, se podemos arriscar medi-lo”, expõe Rodrigo Tavares Mendonça, que prossegue: “Os pais podem preferir um dos filhos por identificação maior, ou seja, por terem uma personalidade parecida e isso produzir um sentimento maior de orgulho; por ver um dos filhos como mais vulnerável e, por isso, necessitado de mais proteção; por ter um dos filhos como o seu apoio, o seu protetor. Enfim, as causas possíveis são inúmeras”. 

O importante, segundo o terapeuta de famílias, é admitir que a preferência existe. “Em outras palavras, os pais precisam reconhecer que tratam os filhos de formas diferentes. Isso não necessariamente significa uma preferência por um deles, apesar de isso poder ser equivocadamente interpretado assim. E justamente por poder ser interpretado assim que os pais precisam reconhecer a diferença no tratamento. E isso não é um tratamento injusto, filhos diferentes realmente precisam de tratamentos diferentes. Reconhecer essa diferença pode ajudar os pais a reconhecerem também os exageros”, aconselha.

Na outra ponta da história, Mendonça recomenda que os filhos, quando dotados de maturidade para tal, busquem racionalizar essa diferenciação. “As crianças não possuem capacidade para refletir adequadamente sobre a preferência dos pais, elas reagem por impulso. Os adolescentes, contudo, podem pensar antes de agir”, diz. Ele lembra que o filho que se vê como preterido pode buscar compreender os motivos dos pais para tratar de forma diferente o irmão. “E essa compreensão pode facilitar a aceitação”, sinaliza. 

De maneira geral, o psicólogo acredita que o diálogo é a melhor forma de resolução para esse tipo de conflito. “É comum que os pais não percebam as consequências dos seus comportamentos na vida dos filhos. E conversar é melhor que atuar, ou seja, que produzir comportamentos sintomáticos”, finaliza.