Imagine a cena, comum em muitos supermercados: você tenta estacionar, mas a vaga está ocupada por um carrinho de compras abandonado. Ou então, na fila do caixa, alguém simplesmente deixa o carrinho atravessado, bloqueando a passagem dos demais clientes. Nos últimos meses, situações como essas viralizaram nas redes sociais, reacendendo debates sobre comportamentos sociais em espaços coletivos, como supermercados e shopping centers.

É bastante frequente, por exemplo, ver pessoas que, após fazerem sua refeição, simplesmente se levantam e deixam as bandejas decorando porcamente as mesas na praça de alimentação em vez de levá-las ao local correto. Também não é incomum chegar a estacionamentos e notar que o motorista deixou seu automóvel “comendo” duas vagas.

Há inclusive uma tese que passou a circular na internet nos últimos anos: a chamada Teoria do Carrinho de Compras, que propõe um experimento simples e provocador: ao sair do mercado, você devolve o carrinho ao local apropriado, mesmo sem nenhuma obrigação formal?

A teoria, que utiliza o carrinho de supermercado também para ilustrar outros comportamentos, levanta alguns questionamentos: será que você precisa de alguém fiscalizando suas ações para fazer o certo? Somos educados somente quando temos uma plateia a nos observar? O que você faz quando ninguém está olhando: devolve o carrinho, limpa a mesa da praça de alimentação, segura o elevador para outro e joga o lixo no lugar certo?

A Teoria do Carrinho de Compras, em resumo, virou metáfora do autocontrole, da capacidade de agir de maneira correta sem ser vigiado, e propõe uma reflexão sobre o comportamento das pessoas nos espaços coletivos. Você deixa a sujeira – o carrinho e a bandeja – para alguém recolher e, num autoperdão automático, logo se desculpa e naturalmente pensa que há alguém pago para fazer isso?

“Tem toda uma questão de ética cotidiana, que está diretamente relacionada com como a gente percebe as coisas no entorno e como a gente percebe a nossa relação com esse lugar, a partir do que nos é ensinado e do olhar do outro. Tem gente que só obedece ao olhar do outro, tem gente que não precisa disso”, pondera o doutor em psicologia social e professor da Escola de Ciência da Informação da UFMG, Cláudio Paixão.

O Interessa foi às ruas para saber como as pessoas se comportam nessas situações. “Sempre que posso eu devolvo. Quando estou com muita pressa, deixo ao lado do estacionamento, mas sempre tento devolver porque facilita para os funcionários. É uma gentileza. Acho que essa correria toda tem deixando o mundo menos gentil”, pondera a dona de casa Cleusa Batista Silva, de 63 anos.

O aposentado Wilson Carlos de Assis, de 71, diz que faz questão de colocar o carrinho de supermercado exatamente no local onde o pegou. Ele, no entanto, não considera que a atitude deva ser enaltecida: “Não é uma virtude, é quase uma obrigação. Para as pessoas que largam o carrinho em qualquer lugar eu diria para pensarem um pouco, porque realmente não custa nada devolver”.

Exemplo

Certos comportamentos tidos como socialmente corretos não estão escritos em nenhum manual, tampouco garantem reconhecimento, aplausos ou recompensa. Eles não são impostos por regras formais, mas esperados como parte de uma convivência respeitosa. Para Cláudio Paixão, a metáfora do carrinho funciona como uma alegoria rica, na qual é possível projetar diversas perspectivas da experiência cotidiana.

Desse modo, podemos analisar diferentes facetas do comportamento humano e refletir sobre como nos relacionamos com normas, responsabilidades e o bem coletivo. De acordo com o psicólogo, ser criado e pertencer a ambientes que desprezam condutas respeitosas em relação ao outro influencia decisivamente em quem somos e como nos relacionamos em sociedade.

“É a educação que molda uma pessoa para essa dimensão mais egocêntrica e pouco preocupada com o coletivo, mais individualizada. A preocupação com o outro é importante para construirmos essa educação coletivista”, afirma Cláudio Paixão.

O especialista faz uma ponderação importante: é preciso interpretar a Teoria do Carrinho de Compras com flexibilidade, levando em conta o contexto. Nem sempre deixar de devolver o carrinho é sinal de desleixo ou má educação. Pessoas com mobilidade reduzida, idosos, pais acompanhados de crianças pequenas ou indivíduos que se sentem inseguros, especialmente em estacionamentos vazios, com risco de assalto ou assédio, enfrentam limitações reais que precisam ser consideradas antes de qualquer julgamento.

É possível estimular a responsabilidade coletiva

A forma como lidamos com os espaços coletivos, como supermercados, ruas, praças e o transporte público, diz muito sobre a sociedade que estamos formando. É o que diz o professor, psicólogo especialista em atendimento analítico comportamental e doutorando em psicologia experimental pela PUC de São Paulo, Gabriel Portella.

Quando observamos atitudes aparentemente simples, como devolver o carrinho de supermercado ou a bandeja da praça de alimentação ao local correto, o que está em jogo, sublinha Portella, vai muito além da ação em si: refletem o modo como aprendemos a nos relacionar com o coletivo.

“São comportamentos que indicam o quanto a pessoa desenvolveu, ao longo da vida, uma sensibilidade para o impacto das próprias ações nos espaços compartilhados. Não é uma questão de etiqueta ou de boas maneiras no sentido superficial. É nesse ponto que entra a importância da cultura, e quando falo cultura quero dizer o conjunto de práticas e exemplos que se repetem no cotidiano e moldam nossos comportamentos”, comenta Portella.

O professor ressalta que é possível estimular a responsabilidade coletiva sem recorrer a leis e punições, mas não nega que seja um desafio: “Isso passa por criar ambientes que valorizem o comportamento cooperativo, que reforcem atitudes respeitosas desde cedo e gerem a percepção clara de que determinada ação gera um benefício concreto para todos”.