“Orgulho nacional”, “marco histórico” e “clima de Copa do Mundo” foram alguns dos comentários mais frequentes nas redes sociais logo após Fernanda Torres se consagrar, por sua atuação no longa “Ainda Estou Aqui”, a primeira brasileira laureada com um Globo de Ouro na categoria de Melhor Atriz de Drama – uma das principais da noite. Os dados são de um levantamento da consultoria de dados e insights da Timelens, que monitorou os assuntos mais comentados, entre a noite de domingo (5) e segunda-feira (6).
Um sentimento de orgulho que aparece bem condensado no depoimento de uma mulher ao Jorna Nacional, da TV Globo, que viralizou nas plataformas digitais, onde ela relata como se sentiu com a vitória da artista: “É o meu Brasil, é o meu Brasil, é o meu Brasil! Eu nem pensei nela como pessoa. Eu pensei num todo. Achei que ali eu estava, que era para mim aquele troféu, era para todos os artistas. Eu achei, assim, que era nosso”.
Essa retomada de um sentimento de orgulho nacional despertada pela vitória da atriz, em uma experiência comparada à de viver uma Copa do Mundo nos tempos áureos do futebol brasileiro, está associada a uma série de fatores, alguns universais e outros bem particulares. É o que avalia a curadora, pesquisadora e realizadora de cinema Tatiana Carvalho Costa, presidenta nacional da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan).
“Primeiro, a campanha do filme foi muito bem orquestrada e soube se valer de uma atriz que tem muitas qualidades para crescer e aderir, de um jeito afetivo, ao imaginário coletivo”, comenta, lembrando que boa parte do Brasil viu Fernanda Torres crescer. “Essa família – a Fernandona, o Seu Fernando e a Fernandinha – estava na casa das nossas famílias pela televisão, pelo cinema. E isso é muito forte porque comunica uma ideia de pertencimento cultural e de partilha de mesmos símbolos representados por essas pessoas”, avalia.
No caso das pessoas mais jovens, que não acompanharam a trajetória da artista ou mesmo da família dela, há o fato de Fernanda Torres ter sabido se atualizar, navegando com desenvoltura pelas novas mídias. “Ela é altamente ‘memética’ e gostar disso. Ela adere muito a essa dinâmica de comunicação que circula muito pelas redes e que chega a outras gerações, que não necessariamente a viram crescer ou têm uma relação de proximidade com essa família do teatro, cinema e televisão brasileiros. E, com isso, ela reforça essa aderência ao imaginário coletivo”, pontua.
“Outro ponto importante é que a Fernanda é um pouco essa pessoa comum, uma mulher engraçada, que não está nesse lugar da diva, daquela mulher sedutora, hipersexualizada. Ela mesma falou que, simbolicamente, se via como o ‘azarão’ que corre ali pela ‘raia sete’, que vem do Sul Global, de um país abaixo da linha do Equador, para enfrentar aquelas mega estrelas hollywoodianas. Então, não é propriamente uma síndrome de vira-lata, mas é a gente torcer pelo ‘mais fraco’, e o mais fraco sendo nós mesmos”, acrescenta Tatiana, pontuando que a vitória dela contra atrizes multipremiadas – estavam no páreo Pamela Anderson, Angelina Jolie, Nicole Kidman, Tilda Swinton e Kate Winslet – gera o que considera uma projeção da força de um Brasil que é capaz de desafiar o poder de Hollywood.
Um sopro na autoestima
A psicóloga Viviane Rogêdo está entre os milhões de brasileiros que assistiram a “Ainda Estou Aqui” e, depois, acompanharam sua ascendente trajetória em festivais e premiações de cinema mundo afora. Com interesse, ela passou a observar toda euforia que a inédita conquista do Globo de Ouro na categoria Melhor Atriz de Drama gerou em todo o país.
“Não sei se a felicidade com a vitória do outro sempre acontece. Às vezes, pode haver uma cobiça, uma inveja. Mas, neste caso, o sentimento despertado foi muito positivo”, recorda, lembrando que, além do orgulho, teve quem se sentisse vingado após ter visto Fernanda Montenegro, mãe de Fernanda Torres, sair sem a premiação quando, há 25 anos, figurou entre as indicadas à honraria por sua atuação em “Central do Brasil” – que, assim como “Ainda Estou Aqui”, tem direção de Walter Salles.
Confira a reação de Fernanda Montenegro com o prêmio da filha, Fernanda Torres, que ganhou como melhor atriz de filme de drama no Globo de Ouro.
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Viviane reflete que uma série de questões afeta a autoestima do brasileiro, levando, inclusive, a uma sensação de não pertencimento. “E aí, quando vem uma premiação dessa… É algo que mexe, sim, com nossa autoestima, com na nossa sensação de ser capaz”, opina, acrescentando que, muitas vezes, nos tornamos fãs daquela pessoa justamente porque ela nos fornece essa perspectiva positiva sobre nós mesmos, nos fazendo sentir mais capazes e orgulhosos da nossa própria identidade.
A pesquisadora de comunicação Cecilia Pawlow, mestranda pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), concorda. “Considerar Fernanda Torres um ídolo nacional não parece um exagero. Ela não apenas brilha como atriz, mas também se tornou um símbolo de orgulho para um Brasil que, por vezes, vê sua autoestima fragilizada. Sua vitória trouxe um momento de celebração coletiva, unindo pessoas diante da TV e nas redes sociais em torno de um sentimento raro de esperança e reconhecimento”, avalia.
Paralelo com os esportes
Parceira de Fernanda Torres no humorístico “Tapas & Beijos”, Andréa Beltrão comparou a conquista da amiga com um acontecimento olímpico: “Eu estou feliz demais por ela. Demais, demais. Uma alegria imensa, orgulho. Ela estava linda, gata, gostosa, maravilhosa. Falou de uma maneira cheia de dignidade, amorosa, simples. É como ver uma Rebeca Andrade ganhar uma medalha. Um Isaquias Queiroz, um Vini Jr. É uma coisa olímpica”, disse em entrevista à jornalista Andreia Sadi, na GloboNews.
Esse paralelo entre a conquista do Globo de Ouro por Fernanda Torres e o ouro olímpico – ou a taça de uma Copa do Mundo – não é gratuito. “Está muito interessante ver, nas redes sociais, a forma como os perfis relacionados ao esporte estão tratando essa vitória do cinema”, comenta Tatiana Carvalho Costa, citando mais uma comparação nesse sentido: “O perfil da Cazé TV, por exemplo, postou uma edição maravilhosa da Fernanda Torres ao lado do Vini Jr., ambos com seus troféus”.
Pesquisadora de cinema, mas também muito interessada pelo universo esportivo, ela acredita que o país ainda se ressente e tem sua autoestima afetada pelo trauma do 7 a 1 – sofridos em partida contra a Alemanha no Mineirão, em BH, na Copa de 2014. A vitória da artista, portanto, viria como mais uma resposta, provando que o Brasil pode, sim, ser vencedor.
“Nesse sentido, percebo que estamos passando por um processo – potencializado depois das últimas olimpíadas – de ampliação do nosso panteão de heróis e heroínas nacionais”, cita, mencionando nomes como Rebeca Andrade, Raíssa Leal e o atleta paralímpico Gabrielzinho.
“E também, talvez, não só pelo 7 a 1, mas por uma decadência da seleção masculina de futebol de não conseguir mais forjar ídolos – inclusive pelo contexto da moçada sair muito cedo daqui e ir para o futebol europeu, sequer jogar no país, sem estabelecer conexão com os clubes daqui –, há um cansaço em relação a essa dinâmica muito centrada no masculino, porque, convenhamos, não tem feito muito sentido uma exclusividade de heróis masculinos. E, então, ela surge, justamente nesse momento em que estamos em busca dessas heroínas”, reflete.
Fazendo as pazes com a cultura
Tatiana Carvalho Costa prossegue indicando ao menos outros três fatores que podem ter favorecido o fenômeno Fernanda Torres sobre a autoestima dos brasileiros.
“Noto que estamos passando por um processo de desfazimento de uma lógica de criminalização e demonização da cultura brasileira, muito em voga nos anos do governo Bolsonaro. E, com esse movimento, estamos voltando a ter orgulho da cultura brasileira – e não apenas do nosso cinema, mas também da nossa literatura”, analisa. Ela ressalta que esta não é uma conquista inédita, tendo mais a ver com uma recuperação do público brasileiro para o cinema brasileiro a partir dessa retomada de um sentido de orgulho nacional.
Um segundo aspecto dialoga com aquele famigerado “complexo de vira-lata”, ou seja, uma expectativa de aprovação externa para validar produções feitas no país. “Não é para se lamentar, ao contrário, temos mesmo que celebrar que o filme esteja sendo bem recebido fora do país. Mas tanta euforia tem, sim, um pouco a ver com essa coisa de que ‘santo da casa não faz milagre’, dessa necessidade do elogio de alguém de fora”, cita. Para Tatiana, a questão é um traço cultural do Brasil.
“A gente ainda tem essa autoimagem inferiorizada porque isso veio do processo de colonização. E, por isso, acho que a gente precisa aproveitar esse momento para dar conta de olhar para dentro e valorizar o que a gente tem, sem esperar essa aprovação externa”, assinala, recordando que, mesmo na literatura, um fenômeno semelhante ocorreu na seara da literatura, por exemplo, com a redescoberta da obra de Machado de Assis após divulgação da escritora, podcaster e influencer Courtney Henning Novak, dos Estados Unidos – que viralizou com vídeos em que exaltava títulos do autor brasileiro. Clarice Lispector é outro nome que ganhou força após aparecer citada em discursos da atriz Cate Blanchett – que já chamou a escritora brasileira de “gênio em absoluto” e disse encontrar coragem em sua obra.
Filme capturou ‘espírito do tempo’
Entre os termos mais recorrentes nas redes sociais após a vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro, além daqueles que exaltavam a conquista, havia uma expressão mais relacionada à história do filme: “Ditadura militar”.
No caso, a obra acompanha a drama da família Paiva após o deputado Marcelo Rubens Paiva ser cassado, preso, torturado e morto por agentes do regime – eventos que levam Eunice Paiva, personagem de Fernanda Torres, ao ativismo político.
“O fato de ‘Ainda Estou Aqui’ tratar de algo que é absolutamente urgente e que está na pauta do dia – a resistência a formas totalitárias de governo que a ditadura brasileira significou – também tem a ver com toda essa repercussão”, avalia Tatiana Carvalho Costa.
“O filme vai revelando os efeitos dessa coisa terrível que é uma ditadura em uma família. E há ainda a virada na vida dessa mulher, Eunice Paiva, que tinha tudo para sucumbir, mas resolve resistir. E acho que isso diz do país. É uma metonímia de um país. E é para onde a gente precisa olhar cada vez mais em oposição ao que a gente viveu recentemente e que ainda nos assombra ainda, que é a ideia de um novo golpe de Estado. Então, ‘Ainda Estou Aqui’ e a personagem da Fernanda Torres condensam todas essas questões e capturam esse zeitgeist”, conclui.