Louca, histérica, desequilibrada, violenta, barraqueira, descontrolada... São muitos os adjetivos utilizados – sempre de forma depreciativa – em situações em que uma mulher se indigna, age com firmeza, impõe limites, é objetiva ou simplesmente expressa raiva, essa emoção que todo ser humano experimenta, independentemente da cultura, da raça e do gênero.

Toda emoção é legítima, tem função e carrega uma mensagem. Porém, a raiva feminina costuma ser percebida de forma distinta; quando parte de um homem é vista sob a ideia da força e da autoridade. Segundo o médico psiquiatra Bruno Brandão, a maneira como expressamos as emoções é moldada, decidida, influenciada e praticamente definida por questões culturais.

“A raiva é uma emoção universal, presente em todo o ser humano, mas a forma como cada pessoa a controla é influenciada por fatores culturais. Mulheres são ensinadas a não ter raiva. A mulher que de alguma forma se ‘rebela’, que expressa a sua emoção com um pouquinho de agressividade, ou mesmo com assertividade, que reivindica seus direitos, é definida pela sociedade como louca, histérica. A expressão da emoção da mulher é muitas vezes podada”, pondera o especialista.

No ambiente profissional, a publicitária Marina de Souza(*) já foi taxada de brava e “séria demais” somente por responder às demandas de forma objetiva, sem muitos rodeios. “Já me perguntaram por que eu não sorrio nas reuniões. Eles fariam essa mesma pergunta para um homem?”, questiona.

“Eu ajo com firmeza, sou uma pessoa direta e pragmática na maioria das vezes, mas também entendo que há momentos em que a descontração é importante. É um equilíbrio, mas das mulheres espera-se sempre um sorrisinho, uma fala agradável e que não leve ao confronto”, completa a publicitária.

Nos relacionamentos afetivos, Marina também já foi julgada por expressar suas emoções de forma natural e espontânea. Se falava um pouco mais alto, o parceiro pedia para ela abaixar o tom de voz porque estava gritando demais; quando, de fato, manifestava raiva, descontentamento e irritação, foi tratada com deboche e hostilidade.

“Por que a mulher sempre precisa ser a fofa, delicada, de sorriso fácil e agradável? Podemos ser isso também, mas também somos fortes, decididas e corajosas. Podemos sentir raiva, expressar esse sentimento sem culpa e sem julgamentos”, acrescenta Marina.

Com a psicóloga clínica Tatiana Freitas Wandekoken não foi diferente. Também alvo de comentários e estereótipos semelhantes, ela recorda que “brava” e “barraqueira” eram adjetivos que costumavam ser associados ao seu nome. No ambiente acadêmico, Tatiana era a pessoa que iniciava as discussões difíceis em sala de aula e sua comunicação sempre foi mais assertiva – às vezes, admite, “até um pouco agressiva, a depender do tema”.

“Quando era mais nova gostava desse lugar, mas conforme fui crescendo percebi que as pautas que eu trazia eram desqualificadas porque me comunicava de uma determinada maneira – especialmente na presença de homens. Precisei, inclusive, adaptar minha comunicação, tentando encontrar algum equilíbrio entre a minha assertividade e os ambientes em que estou inserida”, comenta a psicóloga.

Repressão emocional

Não acolher, invalidar, deslegitimar e reprimir emoção feminina – de raiva, esgotamento ou impaciência – traz consequências e prejuízos físicos e mentais às mulheres. A emoção não é um sentimento anulável, de alguma forma ela vai se revelar – e é preciso lidar com isso de maneira empática e sensível.

“A emoção vai sair de alguma forma, seja com depressão, seja com ansiedade, seja com algum tipo de vício em álcool, drogas, ou mesmo amargura, ressentimento, episódios de explosão. Além disso, uma série de doenças físicas podem estar presentes: o estresse crônico pode levar a dores musculares, problemas gastrointestinais, úlcera, síndrome do intestino irritável, aumentar o risco de infarto. A repressão emocional tem uma série de consequências”, avalia Bruno Brandão.

(*) Nome alterado a pedido da entrevistada

Entrevista

Tatiana Freitas Wandekoken, psicóloga clínica

Por que a raiva, quando expressa por mulheres, costuma ser interpretada como descontrole emocional, enquanto nos homens é associada à força ou autoridade?

As emoções são experiências que envolvem tanto a percepção fisiológica quanto contextos pessoais e culturais. Na prática, isso significa dizer que, embora todos possamos experienciar a raiva como fenômeno fisiológico basal (instintivamente), a interpretação desse sentimento está intrinsecamente ligado à maneira na qual a nossa sociedade se constitui. Socialmente, criamos uma lista de regras de conduta que são aplicadas tanto a mulheres quanto a homens: “mulher é/tem que…”; “homem é/tem que…”. Entretanto, preciso trazer uma visão mais ampla, interseccional, sobre a experiência das emoções.

Mulheres negras, por exemplo, tem mais uma camada de análise que se sobrepõe à categoria “gênero”, que é a raça. Nem todas mulheres são lidas pela sociedade da mesma maneira. Mulheres brancas tendem a ser associadas à delicadeza e à docilidade, enquanto as mulheres negras são associadas à ideia do trabalho, da força e da submissão. Ou seja, ambas estão sujeitas à interpretação de descontrole emocional (o que em um momento já foi denominado ‘histeria’), mas com nuances muito distintas.

Quais os impactos psicológicos em uma mulher que, ao longo da vida, não tem o direito de se expressar com firmeza ou indignação?

Toda emoção tem uma função evolutiva importante. Emoções nos ajudam a: comunicar o outro sobre nossas necessidades, desejos e limites; nos motivar para a ação e na tomada de decisões; e desenvolver o autoconhecimento. Isso quer dizer que qualquer pessoa que não possa acessar e manejar seus sentimentos de maneira adequada e segura provavelmente terá prejuízos em todas essas habilidades listadas acima. Quando pensamos nas especificidades das mulheres, essas habilidades são cruciais em contextos de violência, por exemplo. É pouco provável que uma mulher que não consiga sequer acessar e reconhecer o desconforto consiga pedir ajuda.

Essa postura de passividade que é esperada das mulheres pode ser um dos fatores de risco para permanência nesses relacionamentos. É muito perigoso construir uma ideia com nossas crianças de que as meninas não possam se expressar de maneira assertiva e acessar um sentimento basal e tão importante no comportamento de enfrentamento. Isso sem considerarmos situações fora da violência: tomada de decisão, comunicar desconfortos, colocar limites importantes, se comunicar de maneira assertiva, etc.

Desde cedo, meninas aprendem a reprimir a raiva? Isso afeta o processo de socialização?

Definitivamente, assim como os meninos aprendem a reprimir qualquer sentimento que não a raiva (e de maneira agressiva). Essa percepção está em todos os ambientes macros da nossa sociedade, desde regras e ditados populares até a criação de personagens de jogos e filmes infantis. Nos últimos anos tivemos o crescimento de personagens femininas mais assertivas, corajosas e aventureiras em filmes infantis. Antes disso, o papel da mulher era reservado ao matrimônio (princesas esperando um príncipe que as salvasse).

Não é saudável que uma menina não acesse a raiva, tal qual não é saudável que meninos só aprendam a acessá-la por via da agressividade ou violência (ou que não possam acessar a tristeza, por exemplo). As emoções são fundamentais para a comunicação e para as habilidades sociais. São parte indissociável do que é ser humano.