“Antes eu sonhava, agora já não durmo”, cantou Renato Russo. A frase é da música “Sereníssima”, composta pelo então vocalista do Legião Urbana, juntamente com Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos, em 1991. A letra faz uma reflexão sobre a complexidade das emoções em meio ao caos e à busca por equilíbrio.
Lançada na década de 90, ela antecipou angústias dos dias de hoje - época mais “acelerada”, de alta produtividade, bombardeada pelo excesso de telas e de informações das redes sociais. Afinal, como a vida moderna afetou a qualidade do sono, a relação com os sonhos e a saúde da população?
O brasileiro dorme cada vez menos e, segundo estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 72% da população sofrem de doenças relacionadas ao sono, entre elas, a insônia. O dado é preocupante na medida que adormecer traz uma série de benefícios para a saúde.
“Quando dormimos a nossa pressão é controlada, existe um melhor metabolismo do papel da glicose e dos lipídeos, aumenta a sensação de saciedade ao longo do dia, o combate à inflamação e às células cancerígenas, restauração muscular para atletas, consolidação da memória e da criatividade para estudantes e profissionais. Tudo isso acontece ao dormir”, enumera Thiago Felipe Vasconcelos, médico especialista em sono, membro da Academia Americana de Medicina do Sono (American Academy of Sleep Medicine), da Sociedade Internacional de Cirurgia do Sono (International Surgical Sleep Society) e cooperado da Unimed-BH.
Caminhão de lixo
Por outro lado, a privação do sono já é considerada fator de risco para hipertensão, diabetes, osteoporose e até câncer. O especialista explica que dormindo de forma insuficiente o nosso cérebro não consegue limpar totalmente os resíduos metabólicos que se acumularam durante o período acordado.
“Imagina que o lixeiro resolveu fazer uma greve e agora ele tira 90% do lixo que você coloca na porta da sua casa. Depois de uma semana a rua está suja. Depois de um mês, tem ratos e baratas. Depois de um ano, a pessoa está morando num lixão. Então, a privação de sono crônica faz isso com o nosso cérebro também. Essas coisas vão acumulando e aumenta o risco de demência e Alzheimer”, avalia o especialista.
Dormir menos tempo do que o necessário também pode levar à alterações emocionais. Segundo o neurocientista Cleiton Aguiar, professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), estudos experimentais em animais e humanos mostram que, quando a pessoa é privada de sono REM (rapid eye movement) - fase de atividade cerebral intensa -, ela fica mais impulsiva e tem alterações emocionais de maneira geral. “Esses animais são mais agressivos e têm comportamento do tipo ansioso”, afirma.
Sonhar não custa nada
No dia a dia corrido, em que acordamos com despertador e a primeira coisa que fazemos ao abrir o olho é verificar o celular, há a impressão de que não sonhamos ou somos incapazes de nos lembrar do momento onírico. Porém, o médico Thiago Felipe explica que o cérebro humano não pára.
“A gente sonha todas as noites. Mas, não, necessariamente, se lembra dos sonhos. E eles são diferentes em cada fase. Por exemplo, durante o sono não REM (non-rapid eye movement) - fase de repouso e restauração -, os nossos sonhos são pensamentos mais concretos, sem narrativas. E durante o sono REM, eles têm narrativas”, esclarece o especialista em sono.
O neurocientista Cleiton Aguiar observa que quando acordamos com algum dispositivo de alarme, de forma abrupta, ele interrompe nosso ciclo de sono, o que dificulta as lembranças. “Se você não usa despertador, você vai ter um episódio de REM bem longo e, naturalmente, você vai despertar logo depois disso. E esse é o sonho que você geralmente lembra. Se você usa despertador, você interrompe esse ciclo. E, aí, você não vai se lembrar. Ao pegar o celular, a atenção já se volta para algo externo e não para algo interno”, esclarece.
Segundo ele, o calor e a poluição sonora seriam outros fatores que superficializam o sono e podem vir a atrapalhar as lembranças oníricas.
O que diz a neurociência
Na antiguidade, os sonhos eram vistos como mensagens divinas, formas de se orientar e obter revelações. Atualmente, de acordo com a neurociência, sonhar é importante para a saúde mental e seria uma forma de psicoterapia.
“Segundo o livro ‘Oráculo da Noite’, do professor Sidarta Ribeiro, uma das hipóteses dos sonhos é que eles seriam uma arena de simulação, onde possíveis cenários pudessem ser ensaiados sem colocar a gente em perigo. Isto é, o cérebro tenta antecipar coisas que, por ventura, possam acontecer de ruim”, explica o neurocientista da UFMG.
Pesadelos são protetores
O psiquiatra Bruno Brandão acrescenta que o sonho/pesadelo funciona como uma simulação do mundo real em um ambiente químico mais favorável. “O sonho, muitas vezes, é carregado de muitas emoções. Você tem a vivência daquele trauma, mas não tem tanto aumento de noradrenalina e de hormônios associados com o estresse. Muito pelo contrário. Esses hormônios, esses neurotransmissores, estão em um nível baixo. Tudo isso faz com que você consiga reprocessar aquelas memórias traumáticas, de uma forma mais tranquila, como se você estivesse de fora, analisando aquela situação depois”, conta.
Dessa forma, o pesadelo, por mais desconfortável que seja, tem um efeito protetor. Mas, segundo o profissional, quando os “sonhos ruins” são recorrentes, isso pode significar que você está sofrendo de algum transtorno. “Especialmente transtorno do estresse pós-traumático ou vivenciando, no momento, uma condição muito estressante”, destaca Brandão.
Nos braços de Morfeu
Como ter uma boa noite de descanso tranquila? De acordo com o neurocientista Cleiton Aguiar, evitar café no período da tarde em diante pode ajudar no sono regular. Prestar atenção na exposição à luz também facilita a regulação do ciclo circadiano, que é o ritmo biológico humano.
“Quando chegar à noite, prefira abajures com luzes amarelas do que aquela luz branca. E, obviamente, evitar televisão, tela de celular e luz artificial de maneira geral, à noite. Assim, você dá a chance para o seu cérebro começar a produzir melatonina. Quando a melatonina sobe, as áreas indutoras de sono começam a ser sincronizadas e seu sono fica mais profundo, favorecendo que você sonhe”, comenta o professor.
E, afinal, existe um número ideal de horas necessárias para um sono restaurador? Segundo o Thiago Felipe Vasconcelos, isso vai depender de cada pessoa e da faixa etária dela. Porém, ele alerta que não se lembrar dos sonhos não é motivo para alarme.
"O importante é ter uma rotina de sono, como dormir e acordar no mesmo horário, e valorizar este momento. Não é preciso criar uma ansiedade desnecessária caso não se lembre com frequência dos sonhos. Se incomoda o paciente, se todo dia ele tem um sonho recorrente, por exemplo, e quer saber o que que está acontecendo, vale a pena procurar o médico. Mas, se a pessoa tem bastante energia pra viver a vida dela, não está com depressão, não está com ansiedade e não tem apneia do sono, então não tem problema não se lembrar dos sonhos sempre", pontua.