Em “Eu Também Vou Reclamar”, lançada no disco “Há 10 Mil Anos Atrás”, de 1976, Raul Seixas e Paulo Coelho, que assinam a composição, ironizam a onda de músicas de protesto que quase homogeneizavam os repertórios dos festivais de então, com direito a alfinetadas nada discretas em outros artistas que vinham galgando espaço no meio musical.
“Mas é que se agora pra fazer sucesso/ Pra vender disco de protesto/ Todo mundo tem que reclamar/ Eu vou tirar meu pé da estrada/ E vou entrar também nessa jogada/ E vamos ver agora quem é que vai aguentar”, canta, nas primeiras estrofes, o roqueiro baiano, que, mesmo pela via do sarcasmo, também se mostrava contaminado pelo humor queixoso da MPB que se punha a escrachar – de forma que, ainda que uma iniciativa consciente e crítica, a música também pode ser lida como sintoma de uma experiência para lá de comum: a de ter o próprio humor afetado pelo estado emocional alheio, com o agravante da irritação do outro soar mais epidêmica que a alegria.
Essa assimetria, aliás, não é apenas fruto de uma percepção subjetiva, mas algo que vem sendo investigado e respaldado por pesquisas científicas, com estudos sugerindo que o mau-humor e o estresse têm uma capacidade maior de se espalhar do que o alto astral – e as razões para isso envolvem desde mecanismos neurológicos até adaptações evolutivas.
“Há fartas evidências de que o estresse é contagiante”, resume o psicólogo social Cláudio Paixão Anastácio de Paula, lembrando que pesquisas recentes, como uma realizada pela Universidade da Califórnia, em São Francisco, mostram que simplesmente estar em contato com pessoas estressadas é suficiente para que os níveis de cortisol – o chamado “hormônio do estresse” – aumentem em nossos próprios corpos. Outro estudo, publicado na revista “Psychoneuroendocrinology”, reforça esse achado ao concluir que apenas observar uma situação estressante é suficiente para disparar a produção do mesmo hormônio em quem presencia o episódio, mesmo que não seja parte direta dele. Em outras palavras, o corpo reage ao estresse do outro como se fosse seu.
O fenômeno tem nome: trata-se do que cientistas chamam de “contágio emocional”, um processo em três etapas descrito pelo psicólogo Gary W. Lewandowski Jr., professor da Monmouth University, no artigo “Is a Bad Mood Contagious?” (“O mau-humor é contagioso?”, em português). Em primeiro lugar, informa, ocorre uma imitação não consciente de expressões e posturas do outro – ou seja, você franze a testa ao ver alguém fazendo o mesmo. Em seguida, esse gesto mimetizado gera uma reação emocional: “porque você franziu a testa, agora se sente triste”. Por fim, há o estágio de contágio propriamente dito, em que os sentimentos se sincronizam. “Quando você encontra um colega de trabalho num dia ruim, pode, sem perceber, adotar seus comportamentos não verbais e começar a entrar em um estado de infelicidade”, indica o estudioso.
Embora essa dinâmica também funcione para emoções positivas, como a alegria, o mau-humor parece ter um alcance mais eficaz. Para Anastácio de Paula, a explicação deste descompasso tem relação com o funcionamento do cérebro humano, biologicamente programado para prestar mais atenção a ameaças do que a recompensas. Em ambientes sociais, alguém visivelmente irritado ou angustiado ativa em nós uma vigilância automática, como se estivéssemos diante de um risco iminente. “Tendemos a ficar mais atentos a ameaças a partir de sinais que percebemos no ambiente em que estamos – e a presença de alguém irritado, claro, potencialmente vai ligar esse comando cerebral”, explica.
Mesmo discreto, mau-humor contagia
A neurociência corrobora com a análise do psicólogo. Um artigo publicado pelo Instituto Bem do Estar – baseado em dados da Harvard Business Review – detalha o papel dos chamados neurônios-espelho, pequenas estruturas do cérebro que nos permitem sentir empatia e compreender o que os outros estão vivenciando. Esses neurônios, ao detectar comportamentos e expressões emocionais de outra pessoa, ativam em nós os mesmos circuitos emocionais. E, segundo a pesquisa dos professores Howard Friedman e Ronald Riggio, da Universidade da Califórnia Riverside, quanto mais ansiosa e expressiva for a pessoa diante de nós – verbalmente ou não –, maiores as chances de seu estado emocional nos afetar diretamente.
Não é só com os olhos que percebemos o estresse. “Você também pode sentir o cheiro dele”, diz um trecho do artigo, referindo-se à emissão de “feromônios de alarme” que o nosso cérebro seria capaz de captar inconscientemente. Ou seja, mesmo sem palavras, sem olhares, sem gestos explícitos, nossos corpos reconhecem o mal-estar alheio – e o adotam como se fosse nosso.
Estresse passivo
Já é bem conhecida, hoje, a analogia entre o estresse e o fumo passivo. E não se trata apenas de retórica. Ambos, afinal, nos atingem sem que sejamos os protagonistas e, com o tempo, podem minar nossa saúde – a mental, em um caso, e a pulmonar, em outro. “Por mais que o cigarro ou o desequilíbrio emocional não sejam seus, você também é envolvido em sua névoa densa”, explica Cláudio Paixão Anastácio de Paula, que referenda o uso da expressão “estresse passivo”.
Ele ressalta que o impacto do fenômeno é intensificado em ambientes onde há convivência frequente, como no trabalho ou em casa. Pesquisas realizadas com casais, como a conduzida pelos estudiosos Lisa A. Neff e Benjamin R. Karney, mencionados no artigo já citado artigo de Gary W. Lewandowski Jr., por exemplo, mostraram que maridos experimentam menor satisfação no casamento quando suas esposas apresentam altos níveis de estresse – especialmente em contextos de conflitos mal resolvidos. “O contágio emocional pode ser ainda mais potente quando há práticas de resolução negativa, como a crítica e a rejeição”, destaca o autor.
A pesquisadora Heidi Hanna, autora do livro Stressaholic, mencionada na publicação da Harvard Business Review, concorda e vai além. Para ela, esse tipo de contaminação emocional resulta de nossa predisposição evolutiva de escanear o ambiente em busca de ameaças e vale tanto para espaços físicos quanto para ambientes digitais – como redes sociais, que se tornaram um campo fértil para o espalhamento de estados emocionais negativos. E uma pesquisa brasileira, divulgada na semana do Dia dos Namorados, de certa maneira, se alinha à análise.
Emoções positivas também são contagiosas
Conduzido pela psicanalista e pesquisadora de comportamento Camila Holpert em parceria com o pesquisador Rafael Kenski, o estudo mapeou mais de um milhão de menções sobre amor e relacionamentos nas redes sociais. A descoberta foi que um a cada três brasileiros fala de suas dores de amor usando ironia, piada ou deboche como tom. Essa mesma linguagem aparece em 70% das vezes que nos referimos às nossas inseguranças e em 80% das falas sobre medo de amar e de se machucar. Ou seja, mesmo ao falar de amor, a experiência que se sobressai é a da sofrência – neste caso, pública e contagiosa.
Em contrapartida, o mesmo processo de contágio também permite que boas emoções se espalhem. Mas, como já apontado, elas têm menos força. Segundo Lewandowski, “uma pessoa pode também adotar o bom humor de um amigo ou colega, o que pode ajudar a fortalecer os laços”. A diferença está na intensidade e na velocidade com que essas emoções se replicam, com o mau-humor, ao que tudo indica, gritando mais alto e sendo ouvido com mais facilidade pelo cérebro humano.