A resposta é quase automática quando alguém diz estar sentindo-se magoado pelas atitudes de outro, que pode ser o chefe, um amigo, o namorado ou um parente próximo. Geralmente a frase que mais se ouve nessas situações é que “guardar rancor faz mal”. O que não deixa de ter certa razão, seja do ponto de vista religioso ou científico. Mas pouca gente fala sobre como deve ser a “qualidade” desse ato de perdoar.
“O perdão leva em conta a quebra de uma relação. Às vezes o perdão fica reduzido a uma fala ou a um ato de dizer ao outro que está perdoado, que passou e que está tudo bem, resultando num tipo de alívio de expiação de culpa para aquele que fez alguma coisa de mal, que às vezes nem foi intencional. Aí esse perdão fica sendo esperado como um tipo de licença para errar de novo”, observa a psicanalista Vanessa Teixeira.
Integrante do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos de Belo Horizonte (Ebep-BH), Vanessa salienta que o perdão acaba se tornando um motor para novos pecados, novos malfeitos. “É preciso considerar o que foi feito ao outro. Aquele que foi prejudicado, se podemos chamar assim, experimenta uma quebra no laço de confiança, e o perdão verdadeiro requer que se refaça esse laço de alguma maneira”, assinala.
O que acontece é que, mesmo com a reconciliação, o laço criado anteriormente nunca será refeito. Esse é o ponto a que a psicóloga quer chegar, pois não basta perdoar. Em alguns casos, o prejudicado vai exigir, ainda que inconscientemente, outro tipo de atitude do outro. “Entra em jogo um complicador, que é a questão do sentimento de culpa. Aquele que fez o agravo precisa se sentir culpado o suficiente aos olhos daquele que deve perdoar”.
Em outras palavras, o causador do “dano” necessariamente deve estar arrependido para ganhar efetivamente o perdão. “Afinal de contas, vai pensar o prejudicado, o meu amor vale muito, e não vou dar meu amor de novo para qualquer pessoa, em qualquer situação. Assim, devido a esse movimento de autopreservação, a pessoa não conseguirá tornar esse perdão algo verdadeiro. O laço é quebrado, e não há nada que se possa fazer pela via do amor para refazê-lo”, registra.
No lugar da reconciliação, o que sobressai é o luto. Nesses casos, o tempo se torna um inimigo, contradizendo a máxima de que, “com o tempo, tudo passa”. Para Vanessa, o que acontece é que “dentro dele vai sendo alimentado um sentimento de que o agravo que o outro fez foi muito ruim e que tirou tudo que seria importante para que ele fosse mais feliz, depositando nesse outro as origens dos males que essa pessoa passa a viver”.
“Perdoar tem desdobramentos muito profundos”, conclui Vanessa. “Me parece um pouco moralista andar neste viés de que perdoar o outro nos faz bem. É relativo, dependendo do que o outro fez, de como lidou com esse mal e de que tipo de dano foi sofrido”, comenta. “Como essa pessoa vai perdoar algo muito grave, inesquecível e marcante? É complicado a gente impor isso”.
“Não estou dizendo que não tem que perdoar, mas também não estou dizendo que tem que perdoar”, pondera a psicóloga. No final das contas, a reconciliação pode se transformar numa prisão para os dois lados. “Às vezes esse reatar pode aparecer de maneira superficial, e aquela pessoa que foi machucada fica ali cobrando e ‘recobrando’ uma dívida. Que reatar é esse em que a pessoa deve pagar uma dívida eterna, que não tem fim?”, questiona.
Para Vanessa Teixeira, antes de sair perdoando por aí é fundamental refletir sobre qual é a posição que ocupa diante do que o outro lhe causa. “Qual tipo de circunstância você acha que é superável ou qual é inaceitável? É uma situação que nos dá a chance de parar para refletir qual é o lugar que a gente tem ocupado nas nossas relações. Se você nota certa frequência em precisar perdoar ou ser perdoado, isso diz muito de você também”.
Desculpar é diferente de conviver com a pessoa que lhe fez mal
Para a psicóloga clínica Jaqueline Maia, é importante entender que perdoar é diferente de continuar próximo ou conviver com a pessoa. “Se uma relação de qualquer natureza for inviável de se conviver por algum motivo, é importante perdoar, para que aquela situação com a pessoa não fique ‘reverberando’ em nossa mente o tempo todo”, analisa.
Ela pondera que “ficar relembrando com mágoa pode nos causar danos à mente e ao corpo e nos impedir de viver bem e evoluir”, mas defende que também é necessário manter um afastamento da pessoa. Ela salienta que, no campo da psicologia, entende-se que as relações humanas têm muito a ver com as projeções que cada um de nós faz sobre o outro.
“Nossas próprias dificuldades, quando vistas na outra pessoa, por serem negadas em nós mesmos, causam muito incômodo quando aparecem. Se entendido e bem trabalhado, podemos aprender a lidar com essa parte de nós, e, então, perdoar pode ser, sim, uma forma de aceitarmos nossas próprias dificuldades e, assim, conseguirmos mudar, pois só conseguimos mudar em nós aquilo que aceitamos”, recomenda.
Para Jaqueline, perdão não pode ser sinônimo de impunidade. “Se foi algo que causou danos, busque a justiça, faça valer seus direitos. Perdão é seguir em frente e aprender com a situação que ocorreu”, registra, alertando para os perigos de alimentarmos um ressentimento constante.
“Quando devemos parar de nos envenenar esperando que o outro morra? Parece forte, mas o maior beneficiado pelo perdão somos nós mesmos. Ninguém deixaria sua casa ser habitada por um inquilino que não gosta. E é isso que as pessoas fazem quando são tomadas de raiva por uma situação que ocorreu há tempos e sempre relembram”, destaca.