Ainda hoje, a noção de que a mulher deve “servir” e “dar prazer” ao parceiro influencia as relações heterossexuais – e os dados mostram como isso impacta a satisfação sexual feminina. Estudos comprovam que o gap do orgasmo, como é chamada a diferença na frequência de clímax entre pessoas de diferentes gêneros e orientações sexuais, é maior em relações entre homens e mulheres do que em outros arranjos afetivos.  

Em 2017, por exemplo, uma pesquisa das universidades de Indiana, Chapman e Claremont, todas nos Estados Unidos, que analisou dados de mais de 50 mil pessoas, já apontava essa disparidade: enquanto 95% dos homens heterossexuais relataram ter orgasmo durante o sexo, apenas 65% das mulheres hétero atingiam o clímax com a mesma frequência. Entre as lésbicas, grupo que se mostrou mais satisfeito entre as mulheres, o índice chega 86%. Mas mesmo homens bissexuais – grupo masculino com menor incidência – registram 88%, taxa superior à das mulheres de todas as orientações sexuais.  

Uma das hipóteses aventadas para explicar essa discrepância se ancora na constatação de que a cultura historicamente prioriza o desejo e o prazer masculinos. É o que sugere um grupo de estudiosos da Universidade de Columbia, também nos EUA, que investigou o conceito da “busca de meta de orgasmo”. 

As conclusões, publicadas no mês passado, indicam que, enquanto homens tendem a se concentrar em seu próprio orgasmo, sentindo-se incentivados por suas parceiras, mulheres focam mais em satisfazer seus parceiros.

Para o estudo, foram recrutados 127 adultos heterossexuais, entre 18 e 40 anos, em relacionamentos monogâmicos há pelo menos três meses. Durante 21 noites, os participantes preencheram uma pesquisa sobre suas experiências românticas e sexuais mais recentes, informando se fizeram sexo, se tiveram orgasmos e descrevendo o quão satisfeitos ficaram. 

Os resultados, mais uma vez, reforçaram a tese da lacuna do prazer: se eles tiveram orgasmo em 90% dos encontros e, elas tiveram em 54%.

Mudança em curso

Contextualizando que, no passado, a mulher era vista como alguém a serviço do homem, que era o “dono” da família, tratando a esposa como propriedade, o psicólogo e sexólogo Rodrigo Torres aponta que essa lógica já não é tão naturalizada na contemporaneidade.

“Antes, o ‘dar prazer’ durante o sexo era responsabilidade feminina e estava ligado a essa noção de cumprir esse papel (de submissão), transando apenas para satisfazer o marido, mesmo sem ter prazer naquela relação”, reflete, inteirando que, hoje, essa realidade é outra, apesar de resquícios dessa lógica ainda ecoarem em nossa sociedade – como no modismo do “tradwife” (abreviação em inglês para “esposa tradicional”), que prega a submissão feminina no casamento.

Essa mentalidade, centrada na satisfação do homem, também é flagrante nos conteúdos de influenciadoras que prometem ensinar mulheres a dar mais prazer para seus parceiros.

“Cátia Damasceno e outras blogueiras do ramo têm grande alcance porque falam com um público feminino já acostumado a consumir conteúdos sobre autocuidado, estética e relacionamentos. Há uma demanda culturalmente construída para que as mulheres busquem aprimorar sua performance sexual, enquanto conteúdos voltados para o prazer feminino muitas vezes não têm a mesma adesão entre o público masculino”, reflete a ginecologista obstetra e sexóloga Isabela Aguiar.

Ela prossegue pontuando que o tabu do homem que “precisa aprender” surge como obstáculo para que conteúdos semelhantes com foco no prazer feminino tenham tanto sucesso. “Existe uma pressão social para que os homens sejam naturalmente ‘bons de cama’, o que pode desestimular a busca por conteúdos ‘ensinando’ a dar prazer às mulheres”, examina.

Processo

Para Isabela Aguiar, o entendimento de que cabe à mulher o papel de “dar prazer” ao homem continua, em alguma medida, sendo percebido nas dinâmicas heterossexuais. “A sexualidade é uma construção antiga e, por muito tempo, foi centrada no desejo e no prazer masculino. Mas vivemos um momento que aponta para mudanças, com o prazer feminino sendo cada vez mais falado em redes sociais e pautas sobre sexualidade”, sugere.

Torres concorda. “Atualmente, temos também conteúdos ‘ensinando’ homens a dar prazer a uma mulher. Até porque eles estão sendo muito cobrados e responsabilizados – inclusive por si mesmos – pela performance e satisfação de suas parceiras”, pondera.

Na avaliação do sexólogo, aliás, é natural que esses influenciadores não tenham ainda o mesmo alcance de figuras como a já mencionada Cátia Damasceno, que soma milhões de seguidores no Instagram, YouTube e TikTok. Ele lembra, por exemplo, que a criadora de conteúdo está presente na internet há um bom tempo.

Diálogo é o caminho

Seja produzindo dicas para audiência masculina ou feminina, Rodrigo Torres acredita que a proliferação, nas plataformas digitais, de conteúdos sobre técnicas para dar prazer ao outro é sintoma do fenômeno de supressão do tema sexualidade no dia a dia. “Como não falamos disso na família ou na escola, a tendência é que a gente busque essas dicas, inclusive para pensar se estamos fazendo ‘bem feito’”, situa.

Ele prossegue com um alerta: “Esses conteúdos que ensinam técnicas para dar mais prazer à parceria precisam ser vistos com muitas ressalvas, pois pregam uma padronização, acreditando que todo mundo vai gostar da mesma coisa, criando a ilusão de que existem técnicas milagrosas e universais, o que não é verdade”.

Por sua vez, Isabela Aguiar defende que o caminho para reduzir o gap do orgasmo passa por desconstruir a ideia de que o prazer é obrigação feminina e estimular conversas abertas sobre desejo. “O sexo satisfatório depende de comunicação”, garante. “Um casal com comunicação assertiva sobre o assunto e intimidade só tende a aprimorar a experiência sexual”, conclui.