Pouco a pouco, as gôndolas das farmácias, supermercados, lojas de conveniência e, claro, os feeds dos influenciadores foram ganhando um leque cada vez mais amplo de itens proteicos ou enriquecidos com substâncias como a creatina e a cafeína. Produtos que, inicialmente, eram ofertados em uma cartela mais restrita, composta basicamente por bebidas lácteas e barrinhas com “whey protein” – como é chamada a proteína do soro do leite.

Mais recentemente, porém, entendendo que a demanda era crescente, esses aditivos foram aparecendo em outros tantos rótulos – de macarrão instantâneo à cerveja. Em mais uma expressão desse novo modismo alimentar, o tema já alcançou a ficção, como em uma cena da nova versão da novela “Vale Tudo”, onde o vilão Marco Aurélio, vivido por Alexandre Nero, oferece à Leila, personagem de Carolina Diekmmann, sua parceira na trama, um “whey”, como quem convida para um café.

Essa oferta tão constante e maciça dos suplementos alimentares, antes mais restritos ao universo fitness e esportivo, pode até causar a impressão de que, nos últimos anos, a ciência avançou na capacidade de sintetização destas substâncias ou que pesquisas identificaram qualidades milagrosas nesses produtos. Nada mais enganoso: “Milhares de novos estudos foram publicados (na última década), mas não necessariamente trouxeram novidades ou se consolidaram como evidências científicas robustas”. O diagnóstico é da jornalista Juliana Gomes, à frente da newsletter “Jornal do Veneno”, com foco em notícias alimentícias. 

Ela lembra, por exemplo, que a alegação permitida pela Anvisa às marcas de proteína isolada em pó, do leite de vaca à ervilha, continua a mesma: “As proteínas auxiliam na formação dos músculos e ossos”. “Em relação à creatina, o órgão só libera a divulgação da promessa de auxiliar ‘no aumento do desempenho físico durante exercícios repetidos de curta duração e alta intensidade’. Há muitos outros estudos sendo divulgados sobre a substância, mas os efeitos terapêuticos citados precisam ser mais pesquisados”, define.

“Então, se as lojas de suplementos marcam presença em cada esquina e se o padrão estético atual é um corpo infinitamente musculoso, o impulso não parece vir da ciência. O feito está atrelado a uma série de razões, passando pela descoberta de um nicho de mercado promissor a partir da nossa insatisfação com o corpo na pandemia e pela tendência de comportamento de manada das redes sociais. Sem falar que são tempos performáticos, de busca frenética por engajamento, destaque e validação”, conclui a autora na publicação “Comer com objetivo e massa muscular”.

A psicóloga e psicanalista Jéssica Nascimento concorda. Para ela, o boom dos suplementos alimentares é indissociável do conceito de “ideal de eu” – isto é, a imagem de perfeição que cada sujeito constrói sobre si, ao longo da vida, a partir de um mosaico de influências culturais, como a família, as mídias e, mais recentemente, as redes sociais, que tornaram esse exercício de autoavaliação mediada pela comparação ainda mais severa. 

“Hoje a gente se compara não só com o pai, o irmão ou o vizinho. A gente se compara com uma pessoa do outro lado do mundo, em outra realidade. A exigência é enorme, e a performatividade também ficou maior, uma vez que não basta, por exemplo, ter uma rotina saudável, mas exibi-la”, reflete, identificando na pandemia de Covid-19 um marcador de acentuação deste fenômeno. “A crise sanitária acentuou uma angústia coletiva diante da fragilidade da vida. Como resposta, a busca por um corpo saudável e imune surge também como tentativa de retomar algum controle, que é ilusório”, comenta, adicionando que, nesse contexto, os suplementos aparecem como atalhos: “É como se eles oferecessem uma resposta rápida para algo que é muito mais complexo. E isso se conecta com um discurso capitalista em que até a saúde vira mercadoria”.

O problema é que o enfoque excessivo na performatividade gera um efeito paradoxal: o foco passa a ser o desejo de esbanjar um corpo saudável e não o cuidado com a saúde propriamente dita. Traçando uma analogia deste comportamento, a psicóloga, que desde 2020 atende em um centro estético de Belo Horizonte, relembra que, em plena pandemia, presenciou pacientes viajando de diferentes partes do país e do mundo para realizar procedimentos – como a harmonização facial. “Era uma tentativa de parecer mais saudável, mais jovem. Um esforço para fugir da angústia de envelhecer – ou da morte”, recorda, sublinhando que, para tentar parecer mais saudável, esses pacientes viajavam e circulavam por locais como aeroportos, se expondo a um vírus que vinha causando justamente o adoecimento e a morte.

Excesso de controle e medicalização

Jéssica Nascimento avalia que, mesmo de maneira não tão evidente, a visão da alimentação excessivamente voltada para a produtividade também pode  conduzir a hábitos nocivos, que favorecem o adoecimento. Ocorre que, quando vista a partir da chave da “solução mágica”, a suplementação, como os procedimentos estéticos, passam a ser encarados como atalhos, ignorando que, na verdade, a saúde tem mais a ver com o processo.

Um dos riscos é que essa lógica produza ou reforça comportamentos transtornados, como um comportamento obsessivo de controle. “A pessoa começa a medir proteína, pesar alimento, contar cada micrograma de nutriente. Isso pode virar um ritual compulsivo, uma tentativa de esconder alguma falta”, situa. “Na clínica, não é muito raro a gente encontrar pessoas que começam com uma preocupação legítima mesmo com a saúde, mas sem perceber, vai entrando nessa lógica obsessiva de controle”, alerta, mencionando que algumas armadilhas favorecem esse descaminho, como reforços externos. “(Em nossa sociedade), o corpo magro e definido é muito elogiado. Então, há uma retroalimentação constante que gera uma sensação fake de perfeição”, sinaliza.

Esse caldo cultural ainda reverbera em outros aspectos da lida com o que se come. Caso da popularização de uma visão muito científica e quase medicalizada da alimentação, que transforma a comida em “cálculo nutricional”, reduzindo os pratos a termos científicos, como “porção de proteína” e “dieta hiperproteica, além de induzir a ingestão de substâncias sintetizadas e até à substituição de refeições por “shakes”. “Tudo isso empobrece a experiência simbólica do comer”, adverte Jéssica.

“A gente esquece que o alimento é prazer, memória, cultura e relação com o outro. Vamos pensar: a nossa primeira relação com a nossa mãe se dá pelo contato com o seio materno. E o bebê fica até coradinho, porque, naquele momento, ele recebe o alimento e, ao mesmo tempo, afeto e carinho. Há o aconchego do colo da mãe, o cheirinho dela. Então, desde a origem, a nossa relação com a alimentação é permeada pelo simbólico. Se reduzimos a comida a uma equação, um cálculo ou até mesmo um comprimido, uma solução em pó, então perdemos essa capacidade de escutar o próprio desejo, o próprio apetite e aprender sobre limite, por exemplo”, examina a estudiosa. “Essa ‘medicalização’ da alimentação, portanto, pode transformar o comer ali em mais uma tarefa de desempenho, de produtividade, que serve ao jogo do capitalismo, mas vai levando a uma relação cada vez mais ansiosa e culposa com a comida”, conclui. 

Rótulos podem enganar

A nutricionista Sylvia Hespanha referenda os alertas da jornalista Juliana Gomes e da psicanalista Jéssica Nascimento. E vai além e chama atenção para os danos à saúde metabólica e digestiva provocados pelo consumo sem acompanhamento profissional. “O uso excessivo de whey protein, por exemplo, pode sobrecarregar rins e fígado, e provocar desequilíbrios. Em pessoas com predisposição a problemas renais, o risco é ainda maior”, alerta.

Sylvia destaca que esses produtos são orientados para situações específicas, como em casos de alta demanda nutricional – atletas, praticantes de treinos intensos e pessoas com dificuldades alimentares. “Mesmo nesses casos, o consumo precisa ser orientado por nutricionista, com base em avaliação individual.”

A especialista também faz um alerta contra o marketing enganoso de produtos que se vendem como “fontes de proteína”. Ela indica que rótulos que destacam “rico em proteína” nem sempre correspondem à realidade nutricional e, por isso, recomenda atenção à lista de ingredientes. “Quanto mais curta e com ingredientes conhecidos, melhor. Produtos com muitos aditivos, corantes ou açúcares escondidos (como xarope de glicose ou maltodextrina) merecem atenção”, cita. Outra sugestão é comparar o produto convencional com o que dizem ser “proteico”. “Muitas vezes, o termo ‘proteico’ é usado, mas o produto contém apenas um ou duas gramas de proteína por porção e o dobro do valor quando comparado com o convencional”, aponta.

Por fim, Sylvia lembra que alguns produtos que se dizem saudáveis podem ter altos teores de açúcar ou gorduras saturadas, o que compromete os benefícios nutricionais. “A recomendação é sempre desconfiar de promessas milagrosas e procurar orientação profissional, especialmente se o produto for consumido com frequência”, reforça.

Outro ponto crítico é a substituição de refeições por shakes ou barrinhas. “Esses produtos podem ser úteis pontualmente, mas não devem substituir refeições completas. Faltam fibras, variedade e equilíbrio. A longo prazo, esse hábito pode comprometer a saúde intestinal e o metabolismo”, explica.

A nutricionista reforça que certos grupos populacionais – como crianças, adolescentes, gestantes e pessoas com doenças crônicas – devem ter ainda mais cautela. “Em crianças e adolescentes, o corpo está em formação. Suplemento sem necessidade pode ser prejudicial. No caso de gestantes, as necessidades aumentam, mas devem ser acompanhadas com atenção”, sinaliza.

Para quem busca mais proteína, mas prefere evitar produtos industrializados, Sylvia lembra que é possível alcançar ótimos resultados com alimentação natural: “Ovos, carnes magras, peixes, iogurtes, feijões, lentilhas, quinoa, arroz com feijão… tudo isso oferece proteína de qualidade. O segredo está na variedade e no equilíbrio ao longo do dia”.