Na novela “Vale Tudo”, uma fala da personagem Leila, interpretada por Carolina Dieckmann, gerou grande repercussão após ela passar uma noite de amor com Marco Aurélio (Alexandre Nero) e dizer que já tinha sentido prazer antes, mas que era a primeira vez que tinha um orgasmo. Geralmente prazer e orgasmo são palavras que andam juntas, mas o primeiro pode não necessariamente corresponder ao segundo.
“É totalmente possível sentir prazer sem chegar ao orgasmo, assim como também é possível ter um orgasmo sem ter tanto prazer”, salienta Rinara França, psicóloga clínica especialista na sexualidade feminina e educadora física. Ela explica que a compreensão do orgasmo e do prazer feminino exige um olhar para além do conceito, algo que ultrapasse a anatomia, buscando um contexto evolutivo histórico.
“O prazer é o caminho. Ele representa as sensações que a mulher percebe durante o toque, o beijo e tudo o que envolve o momento. Já o orgasmo a gente pode pensar como o pico desse prazer. É uma descarga intensa de sensações”, diferencia Rinara. “Quanto mais excitação, mais prazer, e maior a chance de se chegar ao orgasmo”, destaca Renata Lanza, psicóloga especialista em Sexologia e Educação Sexual.
“É possível sentir prazer durante a relação mesmo sem chegar ao orgasmo. O orgasmo pode ser descrito como um “pico” de prazer, uma descarga, uma “conclusão” da excitação. As substâncias liberadas no orgasmo promovem sensações de prazer, euforia, motivação”, descreve Renata, que assinala que, nas ciências, os estudos a respeito das mulheres e do prazer delas também são mais recentes.
“O clitóris até hoje é desconhecido para muita gente, e ele sim é o órgão sexual mais importante da mulher. A função dele é exclusivamente dar prazer! É muito mais difícil uma pessoa com vulva chegar ao orgasmo sem estímulo clitoriano”, registra Renata Lanza. Rinara França lembra que a definição de orgasmo data de 1984, feita pelo ginecologista William H. Masters e pela psicóloga Virginia E. Johnson.
“Eles, que mais tarde se casaram, tiveram muitos estudos na área da sexualidade humana que foram de grande contribuição. A definição de orgasmo, para eles, é a de uma breve liberação física e mental, uma tensão acumulada marcadas por contrações rítmicas nos genitais que se estendem pelo corpo, gerando intenso prazer, alívio e sensação de relaxamento, tanto fisiológica quanto mentalmente”, diz Rinara.
O caso da personagem não é isolado. Rinara pontua que anorgasmia primária (mulheres que nunca tiveram orgasmo) abarca de 5% a 10% de pessoas do sexo feminino. “Essas mulheres nunca experimentaram um orgasmo, com ou sem parceiro. Um fator importantíssimo que tem a ver com essa dificuldade está enraizado no contexto histórico, com o silenciamento delas nos papéis sociais impostos”, analisa.
“Quando esse pensamento sexual passa pelo Cristianismo, por exemplo, é como se fosse algo sujo, pecaminoso. Isso dificulta demais, porque vai para a questão familiar mesmo, passando de geração para geração. A questão emocional abarca um pedaço gigantesco das mulheres”, afirma Rinara. Renata lembra que, desde muito novas, as meninas são repreendidas ao se tocarem, enquanto os meninos são incentivados.
“Meninas ouvem ‘tira a mão daí’, ‘é sujo’, ‘não faça isso’. Com isso, pessoas com vulva podem crescer com emoções muito negativas em relação à própria genitália, como nojo ou vergonha, e por consequência não conhecem o próprio corpo, não aprendem a ter prazer”, pondera Renata Lanza, e completa: “Sabe-se que mulheres que fazem sexo com homens são minoria quando se mensura o percentual de orgasmo e satisfação nas relações sexuais”.
Nesse ponto, há uma grande diferença para o sexo lésbico. “Mulheres que fazem sexo com mulheres apresentam um índice de satisfação maior do que as heterossexuais. Isso é fruto de uma série de fatores, mas o principal deles segue sendo o machismo presente na nossa cultura e socialização. O prazer feminino é negligenciado, podado, ficando em segundo plano em grande parte das relações heterossexuais”, avisa.
Resposta ao desejo do outro
Rinara França salienta que muitas mulheres demoram anos para descobrir o orgasmo e que grande parte da vida sexual delas foi vivido sem uma experiência de prazer. “Foi mais como uma obrigação, uma performance principalmente. É como uma resposta ao desejo desse outro, sendo uma mulher suficientemente boa. Ela precisa se permitir merecedora de prazer”, analisa.
Ela registra que a mulher aprendeu a colocar o prazer dela em segundo ou terceiro plano. O homem costuma dizer que precisa ter uma relação sexual para relaxar, como se ele estivesse ‘explodindo’. Quantas vezes a gente já escutou algo assim da parte masculina? E se a mulher se permitisse a isso? É possível sim ela ter essa sensação, só que cultura não a deixa externar isso”.
Para Rinara, essa situação define uma desigualdade erótica, “em que a mulher acaba se contentando com um afeto, um toque, uma presença, ao invés de reivindicar o seu próprio orgasmo”. Desta forma, ao se trazer o prazer feminino como um direito de qualquer mulher, que ela perceba o poder que tem sobre o seu corpo. Ela tem que ser dona dessa escolha”, sugere.
Rinara diz perceber a sexualidade como um caminho de identificação e construção de identidade. “Mais do que um ato, ela é um processo que liberta, reintegra partes silenciadas e nos reconecta com nossos desejos, limites e verdades”, pondera.