De um lado, as pessoas que estão em relacionamentos duradouros e se pegam fantasiando com as tantas possibilidades do sexo casual. De outro, aquelas que têm relações descompromissadas e se pegam sonhando com os benefícios de um romance duradouro com uma única parceria. Em comum, a experiência de olhar a grama do vizinho e ter a certeza de que ela parece mais verde, vigorosa e interessante do que a minha.
As reclamações, seja no campo do prazer fugaz ou na tentativa de construir relações longas, estão longe de ser exceção na rotina clínica da psicóloga e sexóloga Bruna Belo. Para ela, isso é um sintoma de que o desejo também pode surgir da busca por algo que está em outro lugar. Fenômeno que é potencializado pelas dinâmicas contemporâneas.
“A gente sempre vai ser movimentado um pouco também por pensar aquilo que não se tem. Aquela história de que ‘a grama do vizinho é sempre mais verde’. E hoje em dia, com as redes sociais, com o Instagram, isso amplifica muito e aguça esse olhar para a falta”, situa, fazendo menção ainda a um imperativo cultural que sugere que podemos ter tudo o que quisermos, sem renúncias, promovendo a ilusão de que é possível ter tudo ao mesmo tempo, despertando uma ansiedade social vigilante, sempre atenta ao que estamos deixando de usufruir, por exemplo.
Esse caldo cultural aparece também como plano de fundo das reclamações, de uma parte, sobre o esvaziamento emocional das trocas casuais e, de outra, sobre como a estabilidade sufoca o desejo. Na leitura de Bruna, o cansaço, ou melhor, o que vem sendo chamado de “burnout romântico”, atravessa ambas situações. “A gente vive um tempo em que há muitas possibilidades de conexão, mas também muita frustração. As pessoas se sentem desorientadas, sem saber o que querem – ou até sabem, mas não conseguem encontrar um caminho claro para isso”, reflete.
Há ainda certas confusões que só fazem acentuar essas queixas, como a ideia de que “só sexo” significa ausência de investimento ou a fantasia de que amor e sexo devem andar juntos: enquanto o sexo é uma prática corporal, multifacetada, que pode ser expressão de prazer, conexão, comunicação ou busca de alívio; o amor, por sua vez, é uma construção afetiva, cultural e subjetiva, podendo ser direcionado a parceiros românticos, mas também a amigos, pais, filhos… Ocorre que a superposição desses campos nem sempre acontece, e quando não acontece, gera desconforto.
“A gente foi socializado numa cultura que nos ensina que o amor e o sexo devem andar juntos, e com exclusividade. Só que a vida não funciona assim para todo mundo”, avalia, reforçando que, como sociedade, fomos educados para acreditar que o amor romântico é o ápice da realização emocional. “Um amor exclusivo, eterno, que reúna todas as formas de satisfação: sexual, afetiva, social. Isso é uma construção histórica que ainda regula muitas das nossas expectativas”, determina.
Mas dizer que há formas de relação que fogem a esta norma não significa dizer que o sexo casual são desprovidas de investimento emocional e afetivo. “Há ali um gesto, um encontro, um desejo de presença, ainda que pontual. Existe uma entrega naquele momento. Não é porque não há compromisso que não há sentimento”, examina.
O problema é que, por conta dessa barafunda conceitual, muitas pessoas chegam a evitar atos simples de gentileza, como oferecer café da manhã após passar uma noite juntos, com medo de parecer que desejam um namoro. “O medo de ser interpretado erroneamente faz com que as pessoas deixem de agir com naturalidade, e agrava esse mal-estar”, comenta.
Bruna, porém, assinala que há caminhos entre uma coisa e outra, que muitas pessoas estão testando. “Às vezes, as coisas podem coexistir. Ou seja, não quer dizer que o casamento, que a rotina vai destruir o desejo. O mesmo vale para o sexo casual, afinal, é possível construir um vínculo afetivo legal mesmo na casualidade. Então, às vezes, quando se fica nessa lógica muito binária, acabamos ignorando que essas emoções e dinâmicas podem, sim, coexistir”, expõe, acrescentando ser preciso articular esses dilemas a outros diversos aspectos. “A Esther Perel (psicoterapeuta belga-americana) fala que o desejo precisa de segurança, mas também de novidade, de movimento. Portanto, é normal que a gente queira estabilidade, mas também liberdade. Mas é claro que cada pessoa tem as suas necessidades e que é importante também avaliar a fase da vida”, comenta.
A complexidade do desejo
“O desejo é mais complexo do que as categorias que tentamos impor a ele”, analisa Bruna Belo, que se atém a um exemplo dessa fluidez: os conceitos de demissexualidade e fraysexualidade, que pertencem ao espectro da assexualidade. Os demissexuais, diz, são pessoas que só sentem atração sexual quando existe vínculo afetivo significativo – e seriam, portanto, aqueles mais afeitos a construção de vínculos antes do sexo. Já os fraysexuais são aqueles que perdem o interesse sexual quando a intimidade emocional aumenta – e, portanto, estariam mais próximos das experiências mais casuais.
Em comum, avalia a sexóloga, essas duas formas de expressão de sexualidade reforçam o quanto o desejo humano pode operar em campos muito distintos, nem sempre alinhados ao ideal do amor romântico. Ela ainda pondera que essas posições não devem ser confundidas com orientações sexuais, como ser hétero, homo ou bissexual. “Elas são formas de sentir (ou não) atração sexual”, explica, acrescentando que muitas pessoas, mesmo sem se identificar com esses rótulos, acabam reconhecendo essas dinâmicas em sua própria vida afetiva e sexual.
Liberdade que cansa
Se hoje os aplicativos de relacionamento são vistos como campo fértil para explorar esse desejo por liberdade, ao mesmo tempo, são eles que também escancaram o cansaço que essa liberdade pode gerar, como atesta uma pesquisa recente do happn, aplicativo conhecido por conectar pessoas que se cruzam na vida real.
Os dados apurados pela plataforma mostram que, embora o romance ainda seja o principal objetivo da maioria dos usuários, a amizade tem ganhado espaço como uma forma de conexão essencial. Em alguns casos, chega a ser o objetivo central.
Segundo o levantamento, 45% dos brasileiros já fizeram amizades por meio de aplicativos, e quase metade dessas conexões se mostraram positivas: 23% duradouras e 26% passageiras, mas avaliadas positivamente. Entre os usuários com mais de 36 anos, esse índice sobe para 48%, com destaque para as mulheres (50%). Mais interessante ainda é perceber que, para muitos, a amizade é uma intenção explícita: 41% já deram “like” apenas com o desejo de fazer amigos – número que salta para 61% entre mulheres de 18 a 25 anos. Ao todo, 73% dos usuários afirmam que deixar claro o tipo de relação desejada é essencial, justamente para evitar ruídos de interpretação.
Ainda conforme a pesquisa, o que mais atrai em uma amizade é a fluidez da conversa (48%), bem mais do que aparência, hobbies ou estilo de vida. E, ainda que nem sempre seja o objetivo, 15% dos entrevistados relataram que amizades feitas nos aplicativos evoluíram para relações amorosas. Entre homens com mais de 36 anos, esse índice chega a 21%.