É sobre se valorizar

A falácia do 'dedo podre' ainda recai sobre as mulheres

Para a mulher, há a ideia de que a realização pessoal e a autoestima estão atreladas a uma relação amorosa e à maternidade


Publicado em 17 de agosto de 2022 | 03:00
 
 
 
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Nas conversas de bar, nos desabafos mais íntimos ou na terapia: é comum ouvir pessoas se queixarem de ter o “dedo podre” para suas escolhas amorosas. Uma reclamação que, aliás, é mais habitual entre mulheres que se relacionam com homens. Muitas das quais relatam a sensação de possuir um “ímã” que parece atrair apenas parceiros afetivamente indisponíveis – e, normalmente, elas se culpam por isso, julgando ter algo como um defeito de nascença.

“Na clínica, quando estamos falando do atendimento às mulheres, há uma grande demanda relacionada às questões afetivas. Muitas vão falar, por exemplo, sobre se entregarem mais do que seus parceiros e vão imaginar que tem algo de errado com elas por não estarem em uma relação. E esse é um comportamento que não acontece por acaso”, reflete a psicóloga e psicanalista Juliana Schaun Benfica. 

“Ocorre que a nossa sociedade encara as pessoas, primeiro, por uma ideia de gênero. Então, ao se identificar como homem ou como mulher, há a expectativa de que a gente cumpra com uma série de normas de comportamento. No caso da feminilidade, existe uma ideia de que a realização pessoal e a autoestima estão atreladas a dois pilares fundamentais: o sucesso na relação amorosa e a vivência da maternidade. Portanto, é como se o grande empreendimento da vida dessa mulher passasse idealmente por conquistar um homem e ter um filho com ele”, observa. Já os homens tendem a construir a própria identidade a partir de outras perspectivas. “Eles não são socializados a valorizar esses vínculos da mesma maneira. Pelo contrário, são educados a pensar nas mulheres como um instrumento para suprir suas demandas afetivas e sexuais”, critica. 

A psicóloga clínica Leni Oliveira, coordenadora do departamento de relacionamento, casal e sexualidade do Núcleo de Psicologia Seu Lugar, concorda. “Há uma ideia naturalizada e enraizada sobre o que se espera de um homem e de uma mulher. No caso deles, soa como aceitável e até desejável uma certa agressividade, que tende a ser lida como pulso firme, instinto de proteção. Por outro lado, no caso delas, essa mesma característica seria vista como sinal de histeria, de desequilíbrio”, detalha, situando que, para elas, são exaltadas características de submissão e passividade.

“Por conta dessa construção da subjetividade, as mulheres tendem a ter uma opinião sobre si pautada pelas relações que elas têm ou deixam de ter. Então, se está em um relacionamento, se preocupa em se manter nele; se aquele vínculo se quebra, ela se culpa, pensando no que fez de errado e, por fim, se não está, ela vai se questiona sobre a razão disso, chegando a pensar se é saudável sentir-se bem sozinha”, complementa Juliana. “Por trás desse pensamento, temos a culpabilização da mulher e a desresponsabilização do homem. Então, ela vai se questionar sobre a razão de não ter sido escolhida, de não ter conseguido transformar o sapo em príncipe, aparecendo sempre, portanto, como figura passiva, aquela a ser escolhida, e não como protagonista de sua própria história”, diz.  

A psicanalista indica que essa compreensão de si, que considera sobremaneira o estado civil, traz diversas consequências, gerando problemas como a baixa autoestima, a dependência emocional e o engajamento em relações tóxicas. “Em casos mais graves, esse processo de autocompreensão pode ser um fator para a depressão e contribuir para a permanência em relações abusivas”, expõe.

No mesmo sentido, Leni cita que as chances de exposição a situações de abuso aumentam quando a mulher é convencida de que precisa se adequar ao parceiro, muitas vezes se anulando, para que a relação dê certo. “Acontece, inclusive entre aquelas que priorizam experimentar maior liberdade sexual ou que construíram uma carreira sólida, de elas idealizarem como parceiro dos sonhos aquela figura do homem protetor e provedor. E, a partir desse pensamento, elas podem ser induzidas a relativizar dinâmicas relacionais adoecidas, se submetendo, por exemplo, a demonstrações de ciúmes disfuncionais”, explica.

Um novo olhar para si. “Para superar essa ideia de que tem o dedo podre, que em certa medida afeta toda mulher, é importante que ela repense a maneira como valida a própria identidade, como se compreende no mundo, retirando todo esse peso do relacionamento e olhando mais para si. Dessa maneira, ela vai entender que não precisa ter uma postura submissa para ser mulher, que não precisa estar com um parceiro para se sentir completa e que, se estiver em uma relação, não é preciso que seu companheiro cumpra com esses requisitos do homem ideal”, pontua Leni de Oliveira.

História de vida

Tanto Juliana Benfica como Leni Oliveira lembram que, para além dos fatores sociais, que afetam a todas as mulheres, fatores particulares podem também contribuir para essa sensação de sempre se fazerem escolhas amorosas equivocadas.

“É necessário estudar a história de vida dessas mulheres, que podem estar repetindo padrões familiares, por exemplo”, alerta a psicanalista. “Pode acontecer de as mães e as avós terem tido relações disfuncionais, e aquela pessoa tentar inconscientemente reeditar a história da família”, detalha.

Leni também reforça que as referências de maternidade e de paternidade são importantes nesse sentido. “É na infância que vamos aprender a nos relacionar. E, se não elaboramos essas vivências e traumas, podemos continuar a reproduzir esse padrão”, situa. 

Gurus do amor contribuem para o problema

“Temos aos montes os gurus de relacionamento que te ensinam a ser de alto valor, ser irresistível, a atrair ou convencer os homens a te assumirem, de mensagens que coloca homens aos seus pés a limites de benefícios que ficantes e namorados devem receber, tem de tudo. Mas essa lorota de como laçar um homem joga mulheres diariamente em relações abusivas e dependentes”, anota a psicóloga e psicanalista Juliana Benfica, que tece críticas a esses tais “conselheiros amorosos”.

“No caso dos homens, o primeiro problema é que eles tentam ditar como uma mulher deve agir. Muitas vezes, sem qualquer formação, eles se colocam na posição de homem desconstruído, que está interessado em livrar elas desses homens tóxicos. Mas, na verdade, se observarmos com mais cuidado o conteúdo que produzem, vamos perceber que, mais uma vez, há a tentativa de adequar a mulher ao que o homem deseja, reforçando esse lugar de subalternidade e passividade”, avalia.

“E há também mulheres que se vendem como gurus do amor e que também estão inseridas nessa feminilidade masculina. Há muito esse discurso de ‘seja feminina, não seja feminista’, e que prega a necessidade de a mulher ser suave, delicada, paciente. Contudo, não há o questionamento da razão de essas características serem sempre ligadas à subordinação”, provoca. 

“Minha crítica a esses profissionais corre no sentido de eles alimentarem essa lógica de socialização adoecida. Além disso, estão vendendo um guia, uma receita de bolo, que não funciona na prática, pois cada relação é única, e é fantasioso pensar que, nos relacionamentos afetivos, não vai haver conflito em algum momento”, conclui.

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