Saúde

Bipolaridade é caracterizada por oscilações de humor e exige cuidado contínuo

Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), transtorno atinge cerca de 140 milhões de pessoas em todo o planeta


Publicado em 03 de março de 2021 | 03:32
 
 
 
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Em 2014, aos 22 anos, o músico e compositor Alexsander Souza sofreu com uma crise depressiva longa e acentuada, algo que contrastava com períodos em que era tomado não apenas por uma inquietude criativa, mas também por uma euforia tão excessiva que fazia com que ele tivesse dificuldades para se conter. “Naquele momento, eu vi tudo o que tinha construído ruir”, lembra o fundador da Orquestra Multiplayer, que produz e realiza arranjos próprios das músicas mais populares de jogos e animações. Sem motivação para seguir com os projetos artísticos ou para dar continuidade à graduação, ele acabou abandonando o curso de música que fazia, já há sete anos, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Na sequência, ainda precisou enfrentar o drama de ser despejado do apartamento em que morava. Tudo isso culminou na fase mais crítica desse processo depressivo, em que ideações suicidas se tornaram comuns. Embora reconhecesse o momento de fragilidade, Alexsander só conseguiu reunir forças para buscar ajuda após uma intervenção de sua avó. “Ela sempre foi a pessoa que mais me acolheu. Uma vez, perguntou se eu estava bem e me orientou a falar com um psiquiatra”, recorda.

Em setembro de 2019, o artista recebeu o diagnóstico para o Transtorno Afetivo Bipolar (TAB), um distúrbio que, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), atinge cerca de 140 milhões de pessoas em todo o planeta e é caracterizado por alterações no comportamento que levam o sujeito a oscilar entre os chamados estados de mania, hipomania ou depressão. A notícia gerou nele até mesmo um certo alívio. “Eu sempre imaginava que havia algo comigo. Me sentia inadequado, incapaz, até mesmo burro. Mas não sabia o que era, o que acontecia comigo. Enfim, tive uma resposta”, observa. 

A exemplo da história de Alexsander, não é incomum que haja uma certa demora em se chegar à identificação do quadro, como explica Marília Brandão Lemos, médica psiquiatra e psicanalista e membro da diretoria da Associação Mineira de Psiquiatria (AMP). Ela informa que, para um diagnóstico preciso, é necessário preencher vários critérios clínicos. “O paciente precisa ter tido histórico de crise depressiva e maníaca ou hipomaníaca, isto é, fases com humor deprimido intercaladas por fases estáveis e, depois, fases de humor elevado”, expõe. Porém, um período depressivo não será, necessariamente, seguido por um eufórico. “A pessoa pode ter sucessivas manifestações hipomaníacas e, só anos depois ter uma crise depressiva”, explica. A especialista sublinha que esses distúrbios de humor normalmente são desencadeados por situações da vida, havendo gatilhos como situações de estresse. Mas ela adverte que, às vezes, a manifestação da bipolaridade ocorre sem que exista um fator desencadeante específico. 

Dificulta ainda mais o diagnóstico o fato de muitos sintomas serem parecidos com o de outros transtornos. Alexsander, por exemplo, chegou a pensar que tinha o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). “A fuga de ideias, a agitação e a dificuldade de concentração, por exemplo, eram características que eu conseguia identificar e que podem ocorrer em pessoas com ambos os transtornos”, cita o músico.

Oscilação de humor ocorre em fases espaçadas

Marília Lemos explica que é fundamental um diagnóstico diferencial do problema. Ela lembra que, diferentemente do Transtorno de Personalidade Limítrofe (TPL), conhecido como borderline e que também é caracterizado por oscilações de humor, a bipolaridade é caracterizada por uma transição em fases mais espaçadas.

Assim, o período maníaco vai durar entre uma semana e quatro meses. “Nessa fase, há aumento de atividade e energia. A autoestima fica inflada, havendo ideia de grandeza. Notamos também uma redução da necessidade de sono e um desejo de falar muito, mais do que o habitual. Com o pensamento muito acelerado, é normal que ocorra a fuga de ideias e que um assunto nem sequer seja encerrado para iniciar um outro. Nesse cenário, a concentração se torna um desafio, pois a pessoa fica ligada a tudo e não se detém em um só ponto. Também é comum o relato da sexualidade hiperdesenvolvida nessa fase. Outro sinal é a agitação psicomotora”, detalha. 

A psiquiatra assinala que, nesse tempo, o sujeito passa a ter a capacidade de autocrítica diminuída, o que pode levar a excessos: “O indivíduo vai fazer compras exageradas, investimentos insensatos pensando que está fazendo grandes negócios, por exemplo. Também pode se colocar em situações de risco, como fazer sexo sem proteção”. Detalhe que a pessoa pode experimentar episódios de amnésia nesse ínterim. Além disso, ela pode não se dar conta de que há algo de errado, se recusando a procurar ajuda. “Em alguns casos, como em casos em que há ocorrência de comportamentos agressivos, é necessário a internação involuntária”, diz a membro da AMP, citando que, caracterizada pela impulsividade, a etapa maníaca é a que mais expõe o paciente ao risco de suicídio.

Já o quadro hipomaníaco possui sintomas similares, mas menos acentuados. “Nesse caso, o indivíduo fica mais eufórico e agitado, mas não vai sofrer um prejuízo tão acentuado na vida pessoal e profissional e não vai precisar de hospitalização”, examina.

Por fim, a fase depressiva costuma ser a mais longa, com duração, geralmente, superior à da mania e da hipomania. O paciente pode passar até cerca de 13 meses nesse estágio de manifestação da bipolaridade, que é caracterizada pelo humor deprimido durante a maior parte do dia, gerando sensação de tristeza e desesperança. “Há perda de interesse por atividades que antes eram motivadoras, pode haver perda ou ganho de peso, insônia ou excesso de sono. Não é raro que a pessoa apresente dificuldade motora e de aprendizado, perda de energia e sentimento de culpa muito recorrente. É também comum que ocorram pensamentos e desejo de morte”, explica Marília.

Fatores de risco e tratamento

O psiquiatra Bruno Brandão explica que a bipolaridade está fortemente associada a aspectos genéticos, mas pondera que sua manifestação é influenciada por uma combinação de fatores, incluindo aspectos ambientais e da estrutura química do cérebro. “Parentes de primeiro grau de portadores têm um risco dez vezes maior (de desenvolver o distúrbio) do que a população em geral”, informa, detalhando que o transtorno nem sempre ocorre de forma isolada. “É comum o paciente apresentar problemas com álcool e/ou outras drogas”, diz. Marília Lemos acrescenta que algumas substâncias, como a cocaína e a cafeína em excesso, podem ampliar o risco da oscilação de humor. As situações estressoras ou traumáticas, a qualidade do sono alterada e o período do pós-parto também são gatilhos desencadeantes do problema.

Brandão informa que o tratamento envolve medicações chamadas estabilizadoras de humor e que a psicoterapia, a depender da fase da doença, pode estar indicada. E a psiquiatra inteira que o tratamento deve ser cuidadoso. “Se o paciente está na fase de humor deprimido e é administrado uma dose excessiva de antidepressivo, essa pessoa pode virar para a fase maníaca”, alerta. Ela ainda cita que, mesmo após controlada a oscilação de humor, o acompanhamento médico deve ser mantido.

Músico transformou frustração em arte

Desde que iniciou o tratamento do Transtorno Afetivo Bipolar, Alexsander Souza experimentou uma inédita estabilização de humor. “Comecei a tomar os remédios e segui com a psicoterapia, que já fazia. No meio de 2020, me sentia mais estável. Até meu processo de composição se tornou mais organizado, como se eu tivesse mais clareza do que estava fazendo”, garante. Contudo, junto à melhor sensação de bem-estar, o músico passou a sofrer com uma certa apreensão, quase um remorso. Pensava o que poderia ter sido diferente e o que a bipolaridade havia lhe causado. Mas, agora, o compositor se sentia pronto a manejar suas emoções e sentimentos. Assim, incentivado pela psicóloga que o acompanha, fez dessa frustração arte.

Mesmo estando em isolamento por conta da pandemia de Covid-19, ele escreveu e produziu a peça “Hildegarda”, contando com a colaboração de amigos do Coral da Escola de Engenharia da UFMG, do qual ele já foi regente.

Na obra, representando a própria bipolaridade, uma deusa tem enraizada em si uma calamidade. Há também uma santa vidente, a Hildegarda, que, cega, recebeu, ao nascer, olhos feitos de pedras preciosas que permintem que ela tenha visões concedidas a si por um anjo da morte. “Dessa forma, a personagem nunca vê a realidade em si, mas sim uma versão fantasiosa dos fatos, sempre associados ao passado”, explica o compositor, complementando que Hildegarda representa a fase depressiva do transtorno.

Por fim, há a rainha Brunhilda, que se casa com a santa vidente para roubar seus olhos e que é uma alegoria da fase da mania. “Depois de assassinar Hildegarda, essa rainha tem a visão do mundo sendo destruído por uma calamidade que nasce e progride a partir da deusa. E, por isso, ela se mata assustada pelo fato de que nada que havia construído sobreviverá”, conta.

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