Ainda nos primeiros dias de confinamento na casa do “Big Brother Brasil” (“BBB”), o ator e cantor Fiuk se emocionou ao relatar como, por anos, precisou lidar com dificuldades de aprendizagem e de socialização, sendo alvo prioritário de colegas na infância e na pré-adolescência, até que, finalmente, foi diagnosticado com o Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), uma condição que impacta o funcionamento cognitivo, emocional, acadêmico e/ou social do indivíduo e que é caracterizada por dificuldades de manter a atenção em tarefas longas e pouco estimulantes, por comportamentos impulsivos e pela hiperatividade motora ou de pensamentos. “Eu estudava, chegava em casa, e minha mãe ficava passando coisas. Tinha as piores notas, era bizarro. Fui crescendo e quis saber o que era isso que eu tenho, fui ficando inquieto. Será que minha cabeça é limitada?”, disse em conversa com o rapper Projota, sublinhando como o laudo psiquiátrico foi recebido até mesmo com certo alívio, pois, a partir de então, ele pôde compreender melhor a si mesmo. 

Na mesma conversa, Fiuk narrou episódios de bullying que parecem ter sido rotineiros na fase escolar. “Não era uma coisa positiva na escola, os moleques acabavam comigo. Eu não conseguia ser amigo de ninguém. As meninas sempre ficavam com dó, mas até a minha pré-adolescência foi brabo. Eu sempre tinha que me isolar, sentar no canto da sala”, expôs. São histórias que podem parecer, para parcela do público, dissociadas uma da outra. Mas, para pessoas com TDAH, seus familiares e especialistas, é fácil compreender a conexão entre o diagnóstico e as situações de exclusão e até de agressão. 

“Dificuldade nos relacionamentos com os outros é uma realidade para muitos de nós, pessoas neurodivergentes”, reconhece o estudante Allan Oliveira, 15. “Quando comecei a investigar o TDAH, notei que características que marcam esse transtorno são cercadas de mitos, assim como acontece com o autismo ou com a bipolaridade. A verdade é que normalmente passamos por situações de preconceito, porque pouca gente entende como nosso cérebro funciona e está disposta a ser empática”, avalia ele, que é militante pelo reconhecimento de que casos de desenvolvimento neurológico considerado atípico para os padrões atuais e convencionais de normalidade devem ser considerados um acontecimento biológico esperado. 

Capacitismo. À luz da própria experiência, Allan, que se identifica como homem trans, examina que, mesmo que uma pessoa com TDAH não sofra com o bullying propriamente dito – isto é, com a prática de atos violentos, intencionais e repetidos contra uma pessoa indefesa, que podem causar danos físicos e psicológicos às vítimas –, é certo que em algum momento precisará lidar com a discriminação. “Hoje, me parece impossível escapar disso, porque vivemos em uma sociedade capacitista”, examina em referência à forma de preconceito com Pessoas com Deficiência (PcD), que são vistas como potencialmente incapazes, limitadas ou até mesmo são reduzidas à sua deficiência. 

Embora não acompanhe o reality show, tampouco torça por Fiuk, Allan sentiu incômodo ao notar como comportamentos do artista, que são características secundárias da TDAH, haviam se tornado alvo de piada nas redes sociais. Por isso, decidiu falar sobre o assunto publicamente. Em um dos tópicos, comentou as crises do choro do brother, algo que associa à Disforia Sensível à Rejeição (DSR), quando o sujeito evita ao máximo se expor a situações em que possa se sentir rejeitado, sendo que, quando isso acontece, há grande sofrimento, com descargas de estresse que podem desencadear agressividade ou melancolia. “Até me surpreendi com a repercussão. Acho importante que as pessoas entendam que não é sobre fazer drama”, garante. 

Dificuldades de relacionamento

A psicóloga Bianca Lima, especialista em neuropsicologia e em terapia cognitivo-comportamental, confirma que, como consequência de todas as dificuldades presentes no transtorno, o TDAH também afeta o aspecto relacional dos pacientes. “A criança com o diagnóstico pode tornar-se o foco de atenção nos ambientes que frequenta, principalmente aquela com mais sintomas de hiperatividade, sendo muitas vezes discriminada tanto por outras crianças, por irritar e ‘atrapalhar’ as brincadeiras, como por adultos que, às vezes, a denominam como inconveniente ou até mesmo de mal-educada”, explica. “Já aquela com predominância desatenta pode ser tachada de lerda ou preguiçosa, por parecer não ouvir quando se fala com ela, ser mais esquecida nas tarefas da escola, nos materiais e, consequentemente, tirar notas mais baixas”, completa. 

Autora do livro “É TDAH? E Agora?”, a psicóloga observa que essas crianças comumente “são evitadas em grupos de escola, ganham apelidos, deixam de ser convidadas para as festinhas de aniversários ou podem optar por ficar sozinhas no recreio”. As implicações dessas atitudes são graves para a construção da autoimagem da pessoa neurodivergente, “pois ela pode interpretar (a si mesma) como sendo um problema para as pessoas e desenvolver outras questões emocionais, como ansiedade e depressão”, sinaliza. 

Já adolescentes com TDAH, quando não há acompanhamento profissional, também podem apresentar problemas nos relacionamentos. “São comportamentos que vão desde a reclusão social, gerada pela baixa autoestima, a comportamentos de risco, como o uso abusivo de álcool e outras drogas, o sexo sem proteção e até o envolvimento com a criminalidade, seja para se autoafirmar ou por minimizar os riscos dessas situações”, explica Bianca, pontuando que esse grupo está mais propenso ao bullying, podendo atuar como vítima e/ou agressor. 

Nesse sentido, a psiquiatra Christiane Ribeiro alerta que os adultos devem estar atentos a sinais de ocorrência de bullying, “como o fato de a criança ter poucos ou não ter amigos na escola, passar muito tempo sozinha, chegar em casa chorando sem explicar o motivo, dormir mal e queixar-se de pesadelos com a temática escolar”, indica. Membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), ela reforça que situações estressantes e traumáticas podem desencadear sintomas depressivos e ansiosos em pessoas com TDAH, mas o pedido de socorro pode vir codificado, sendo manifestado por comportamentos como o choro fácil, o medo, a insônia e sintomas físicos, como dores de cabeça e indisposição. 

Para Bianca, pais e professores devem, além de estar atentos a todos esses sinais, conversar abertamente sobre o que é TDAH com os filhos e com as outras crianças, buscando refletir principalmente sobre o respeito e acolhimento de uma criança ou um adolescente com o transtorno.

TDAH no BBB

Christiane Ribeiro lamenta que, na 21ª edição do “BBB”, o participante Fiuk venha sendo alvo de piadas que ironizam a sua aparência e o seu desempenho no jogo, principalmente nas provas que exigem concentração e equilíbrio, mesmo depois de ele e sua equipe terem confirmado diagnósticos de TDAH, ansiedade e depressão.

“O indivíduo com o transtorno pode apresentar dificuldades em sustentar a atenção, e se manter concentrado em provas que exigem mais dessa função psíquica. A própria impulsividade, bastante comum nos tipos de TDAH misto ou hiperativo, pode levar a atitudes precipitadas que acabam prejudicando o paciente em jogos e competições”, salienta.

“Outro ponto que chama a atenção é o relacionamento do participante com os outros confinados da casa do ‘BBB’. Recentemente Fiuk é criticado por sua irritabilidade e oscilações de humor. O transtorno depressivo e o transtorno de ansiedade são comorbidades psiquiátricas comuns em pacientes com TDAH”, conclui Christiane.

TDAH: Conheça as causas e os sintomas e saiba como são feitos o diagnóstico e o tratamento do transtorno

Causas. A psicóloga Bianca Lima explica que as causas do TDAH ainda não são totalmente esclarecidas. “Contudo, pesquisadores têm sugerido que, por ser um transtorno neurobiológico, ou seja, a criança já nasce com ele, o fator genético tem um papel muito importante no surgimento do transtorno. Em pesquisas com exames de neuroimagem, muitas crianças com o transtorno apresentaram estruturas encefálicas, incluindo o córtex pré-frontal e os núcleos da base, menores do que naquelas sem o diagnóstico. Não se sabe o tamanho dessas diferenças e se esses dados seriam suficientemente confiáveis para o diagnóstico. Além disso, fatores não genéticos, como lesões encefálicas, uso de álcool e drogas na gestação ou intoxicação, nascimento prematuro ou complicações no parto, também podem estar envolvidos na função dos neurônios dopaminérgicos e noradrenérgicos, hormônios que têm sido descritos como estando alterados nesses pacientes”, explica. 

Sintomas em crianças. “Os sintomas de TDAH nas crianças se manifesta, principalmente, na dificuldade de manter a atenção na escola e em casa por período prolongado, dificuldades em lidar com a rotina, grande agitação motora, como se levantar ao longo das aulas ou problemas para ficar sentado em lugares que se espera que fiquem, somadas a dificuldades de esperar sua vez nas brincadeiras, tendo, muitas vezes, atitudes impulsivas, como atropelar as pessoas enquanto falam”, avalia a psicóloga. 

Sintomas nos adultos. “Nos adultos o transtorno pode se apresentar da mesma forma que nas crianças, contudo é comum também comportamentos procrastinadores, dificuldades de dar início a tarefas que demandam maior investimento atencional ou mental. Além disso, os adultos podem ser impulsivos, apresentar comportamentos arriscados, e a hiperatividade pode não ser mais motora, e sim de pensamentos acelerados, que provocam um esgotamento psicológico nesses pacientes e podem causar ainda comorbidades, com transtorno de ansiedade, depressão, uso abusivo de álcool e outras drogas e outros. O TDAH quando não tratado pode trazer muitos prejuízos nas relações sociais, na vida conjugal, acadêmica e profissional e financeira do indivíduo”, afirma. 

Diagnóstico. A especialista expõe que o diagnóstico do transtorno é puramente clínico. “Dá-se por meio de um processo amplo que envolve observação, entrevistas, questionários e deve ser feito por profissionais capacitados, que conheçam muito bem os sintomas do transtorno e saibam diferenciá-lo de outros, visto que os transtornos psicológicos e psiquiátricos, muitas vezes, se diferenciam discretamente uns dos outros ou se apresentam associados. Além disso, apesar de não obrigatória, uma avaliação neuropsicológica é recomendada, principalmente para investigar os prejuízos cognitivos desse paciente, e não apenas comportamentais”, pontua. 

Tratamento. Bianca Lima indica que o tratamento será sempre individual, isto é, deverá ser guiado segundo os achados no diagnóstico e atender a necessidade do paciente, de sua família, e muitas vezes envolver partes da sua rede social, acadêmica e profissional, em uma perspectiva multidisciplinar. De maneira geral, “a terapia cognitivo-comportamental é hoje a principal abordagem usada pelos psicólogos para o tratamento das pessoas com TDAH; por se tratar de uma intervenção mais prática, pode ajudar o paciente na organização, uso do tempo, planejamento, definição de prioridades, relacionamentos e até mesmo gestão financeira. Além disso, uma grande maioria desses pacientes precisará de um acompanhamento de psiquiatras ou neurologistas para intervenções medicamentosas para tratar tanto os sintomas do transtorno como possíveis comorbidades. Outros profissionais como terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, psicopedagogo podem ser importantes no tratamento”, reforça.