Cérebro

Boa memória é menos uma vantagem biológica e mais resultado de exercício diário

Aos olhos da ciência, lembranças fotográficas não significam maior capacidade cerebral


Publicado em 21 de julho de 2021 | 03:02
 
 
 
normal

É só pintar qualquer dúvida sobre algum acontecimento do passado para que Luciana Quintão seja acionada. Isso porque, entre as amigas dela, a memória eficiente da dentista fez fama. Pudera. A mulher recorda-se com facilidade de datas, músicas e eventos vividos no período escolar. Às vezes, traz tanta riqueza de detalhes que impressiona, chegando a se lembrar das cores das roupas usadas em alguns eventos especialmente marcantes. E não é só. Aos 45 anos, Luciana refaz sem dificuldade fórmulas matemáticas que aprendeu ainda no ensino médio – uma ajuda e tanto para sobrinhos e para o filho, que têm a quem recorrer quando alguma dúvida aparece. 

Apesar de deixar muita gente boquiaberta com a precisão de suas memórias, Luciana minimiza esses feitos e garante: “Não tenho nada de especial, sou apenas uma pessoa atenta”. “Isso de me lembrar das coisas com facilidade é algo que muita gente atribui a mim, como se fosse um talento, algo quase sobrenatural. Mas não é isso. Não é que eu tenha uma memória fotográfica ou coisa do tipo. Basicamente, eu sou muito ligada, tenho um bom raciocínio lógico e presto atenção em tudo. É só isso”, pondera. 

Aos olhos da ciência, Luciana está certa. Afinal, é muito provável que o cérebro dela não seja muito diferente dos cérebros de suas amigas e, até o momento, não há evidências de que fatores genéticos possam ser decisivos e garantam uma melhor capacidade de registrar acontecimentos. 

“Em geral, o que diferencia um grupo de pessoas que têm se lembram razoavelmente das coisas daquele grupo que tem uma capacidade aparentemente extraordinária é que esses últimos treinam a habilidade de memorização no dia a dia, mesmo que de forma inconsciente e não intencional”, observa a psicóloga médica Telma Oliveira. Ela conceitua a memória como “a nossa capacidade de armazenar e de recuperar informações” e sublinha que, para ser mais duradoura, uma lembrança precisa ser recuperada ocasionalmente.

Já o psiquiatra Bruno Brandão destaca que alguns indivíduos podem já ter nascido com uma supermemória. “Mas é difícil saber exatamente o que levou a esse fenômeno”, pontua. Entre as possibilidades aventadas por cientistas, essa capacidade extraordinária pode estar ligada a um desenvolvimento superior da área que regula a memória, o lóbulo temporal. “Processos cognitivos aprendidos, mesmo de forma inconsciente, ou técnicas de memorização também contribuem para o aperfeiçoamento dessa função psíquica”, indica.

“Outra coisa que devemos levar em conta é que existem outros fatores que aumentam as chances de alguém se lembrar de algo. Se eu tenho uma boa capacidade de atenção e de concentração, se estou descansado e com a saúde física e mental preservada, naturalmente terei melhores condições de registrar mentalmente uma informação”, opina Brandão.

Doutora em neurociência pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Elisa de Paula França Resende acrescenta que nosso cérebro está sempre remodelando sinapses. Isso significa que, o tempo todo, fatos menos relevantes, que são acionados menos vezes, vão cedendo lugar para outros, mais importantes. 

“Uma hipótese que talvez explique por que algumas pessoas têm mais capacidade de se lembrar das coisas pode estar associada a esse mecanismo. Nesse caso, esses indivíduos teriam um mecanismo de remodelagem mais eficiente que a maioria. Mesmo assim, seria difícil dizer o porquê desse fenômeno”, complementa a neurologista, citando que pacientes com o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), por exemplo, costumam apresentar melhor capacidade de memorização em razão desse comportamento cerebral. 

Elisa reforça que, para além dessa hipótese, estudos recentes não encontraram diferenças fisiológicas ou genéticas que dessem vantagem aos portadores de uma capacidade de memória mais eficiente. Ela também situa que essa função cerebral pode ser trabalhada por meio de exercícios e que será beneficiada se o sujeito cultivar hábitos saudáveis. 

“Para começar, é importante entender que fatores afetivos e emocionais vão ser cruciais para que um evento seja registrado. Por isso, quanto maior a carga afetiva relacionada a um fato, maiores as possibilidades de ele ser relembrado”, observa a neurologista. “Além disso, é sempre importante cuidar de problemas como hipertensão, diabetes, colesterol alto e baixa acuidade auditiva, que são fatores de risco para complicações neurológicas”, alerta, citando que o tabagismo e o etilismo também compõem o mosaico de comportamentos de risco para esses distúrbios. Por outro lado, a leitura, o aprendizado de novos idiomas e a resolução de problemas matemáticos são instrumentos interessantes para o exercício da memória. 

Superidosos. Elisa Resende cita que estudos sobre os chamados “superidosos” – como é chamado o grupo de pessoas que, com mais de 60 anos, ostentam desempenho cerebral equiparado ao de jovens – também não indicam nenhuma diferenciação genética ou fisiológica que garantiram vantagem a eles.

“As pesquisas mais recentes indicam que ter um maior nível educacional e não ter tido depressão são fatores que favoreceram essas pessoas. Já outros fatores, como saúde em geral, religiosidade e muito contato social, não pareceram influenciar essa capacidade de memorização – embora a gente saiba que a pouca sociabilidade seja prejudicial à memória”, explica.

Síndrome. O psiquiatra Bruno Brandão diferencia pelo menos quatro tipos de memória: “A de procedimento está ligada a nossa capacidade de escovar os dentes, por exemplo. Já a de trabalho se relaciona à capacidade de reter informações por um breve período, apenas para executar uma tarefa. Há também a semântica, que diz respeito à habilidade de nomear as coisas, e a episódica, também chamada de memória autobiográfica”, situa.

“O problema, se você memoriza tudo, é que você pode ficar sobrecarregado. Afinal, algumas informações são dispensáveis. Além disso, o esquecimento é importante para o desenvolvimento. E isso pode causar sofrimento para as pessoas com a Síndrome da Memória Autobiográfica Altamente Superior, que conseguem se lembrar de experiências que viveram dias após o nascimento”, aponta o especialista, explicando que essa condição é raríssima. 

A incógnita da supermemória 

A existência da memória eidética, chamada popularmente de “memória fotográfica”, ainda é controversa no meio científico. Em uma publicação do ano passado, feita pelo “Jornal da Universidade de São Paulo”, o professor Cesar Alexis Galera, do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), expôs que o primeiro indício da existência de alguém com capacidade extraordinária de se lembrar das coisas data do ano de 1920. O registro aparece no livro “A Mente de um Mnemonista”, do neuropsicólogo soviético Alexander Romanovich Luria.
 
A história, de fato, é impressionante. Shereshevsky, ou S., como ficou conhecido, foi submetido a testes no Instituto de Psicologia de Moscou. O jornalista conseguiu recordar cada uma das 70 séries de números e letras a ele apresentadas. Além disso, foi capaz de repetir, na ordem inversa, fórmulas matemáticas, poemas inteiros e orações. “Dezesseis anos depois dessas sessões iniciais, S. ainda era capaz de se lembrar não só das palavras memorizadas, mas da cor do paletó que Luria vestia, dos detalhes do ambiente em que estavam e onde cada um estava sentado”, explicou o professor na publicação da USP.  

Hoje, “a grande parte mnemonista é produto do treino”, prosseguiu Galera. Caso dos participantes do Campeonato Mundial de Memória, realizado há 30 anos, que são capazes de repetir 67.980 dígitos do número Pi, 1.400 cartas aleatórias de baralho ou 4.140 dígitos binários. No artigo, o especialista defende que “podem existir memórias surpreendentes, como a de S., escondidas pelo mundo, mas que ainda não foram encontradas”. Contudo, como há poucos registros sobre o fenômeno, “faltam evidências para estudar a memória fotográfica”.

Notícias exclusivas e ilimitadas

O TEMPO reforça o compromisso com o jornalismo profissional e de qualidade.

Nossa redação produz diariamente informação responsável e que você pode confiar. Fique bem informado!