Um dos temas candentes da novela “Vale Tudo”, atualmente em exibição no horário nobre da TV Globo, são a ambição e ganância encarnadas, sobretudo, pelas personagens Maria de Fátima, vivida por Bella Campos, e César, interpretado pelo galã Cauã Reymond. A engenheira Camila Lincoln, de 33 anos, que acompanha a trama, condena as atitudes do casal.

“Você não pode ser ambicioso a ponto de passar por cima das outras pessoas, aí já vira ganância”, diferencia Camila. Raphael Alvarenga, de 39 anos, formado em administração, também defende que é preciso haver um limite ético nessa equação. “Querer melhorar de vida é uma coisa, mas não precisa atrapalhar a vida dos outros”, opina.

A visão é compartilhada pelo empresário Hugo Fonte Boa, de 37 anos. “Ganância é quando você nunca está satisfeito com o que tem, já a ambição é boa para te tirar do lugar. Eu sou uma pessoa que não se acomoda, o que não significa que eu desvalorize aquilo que conquistei até aqui”, observa.

A professora de inglês Luana Corrêa, de 34 anos, segue na mesma linha. “A ganância é perigosa porque você sacrifica relações importantes na sua vida por coisas que não valem a pena. Eu acho que a ambição pode ser boa, mas depende da forma como você lida, também não tem nada de errado em estar numa boa com o que se tem”, afirma. 

Diferenças

O psicólogo Rodrigo Tavares Mendonça procura distinguir, do ponto de vista clínico, os dois conceitos, frequentemente confundidos no dia a dia. “O senso de prioridade distingue a motivação por trás da ambição e da ganância. A pessoa ambiciosa deseja alcançar um objetivo específico, assim como a gananciosa. Contudo, a pessoa gananciosa coloca esse objetivo específico no topo da sua escala de prioridade. Para alcançar esse objetivo, ela pode contrariar seus próprios valores ou prejudicar as pessoas que ama. Na ganância, a ambição está acima dos outros valores do indivíduo”, analisa. 

Ele reforça que a distinção reside “nesse senso de prioridade do indivíduo, pois ambição e ganância são atitudes semelhantes”. “Acredito que a ambição começa a se transformar em ganância quando a pessoa passa por cima dos próprios valores para alcançar seus objetivos, quando a convivência social ou o bem-estar das pessoas que ama são prejudicados, quando o desejo de alcançar esses objetivos se torna mais importante do que os outros valores fundamentais para se viver bem em sociedade”. No entanto, o psicólogo defende que “a ambição não é um valor negativo, pelo contrário”. “Ela pode direcionar a vida do indivíduo para o crescimento pessoal e profissional”, pontua.

Positiva

O especialista sustenta que a ambição pode ser positiva, por exemplo, quando se deseja “ser uma pessoa melhor, contribuir mais com a sociedade, alcançar sucesso profissional, melhorar suas capacidades”. “A ambição pode sim ser produtiva. Contudo, as conquistas individuais podem não trazer a felicidade que se espera”, pondera.

Tavares toma emprestada uma frase do aventureiro norte-americano Christopher McCandless, que inspirou o filme “Na Natureza Selvagem” e morreu aos 24 anos depois de peregrinar pelas florestas da região, após meses de solidão no Alasca. 

“A felicidade só é real quando compartilhada. Se as conquistas ambicionadas não chegam acompanhadas de pessoas com quem se ama para compartilhá-las, elas podem perder o sentido”, afiança Tavares.

O psicólogo acredita que esse é o principal problema da ganância. “A pessoa gananciosa passa por cima das outras para alcançar seus objetivos. No fim, ela pode acabar sozinha, e, por isso mesmo, deprimida, por não conseguir aproveitar suas conquistas junto com outras pessoas”, salienta. 

Consequências

Para evitar esse quadro, o psicólogo recorre ao mais universal de todos os sentimentos. “O amor é fundamental para a qualidade das relações, para que elas produzam bem-estar. Estar ao lado de uma pessoa gananciosa pode significar estar ao lado de uma pessoa egoísta, que pensa primeiro nela mesma, deixando seus amigos, seus familiares e seu casamento em segundo lugar. Nessas circunstâncias, falta amor”, constata.

Tavares advoga que “não existe relacionamento saudável na ausência do amor”. “Precisamos nos preocupar com o bem-estar das pessoas que estão ao nosso redor para termos um relacionamento satisfatório com elas”. 

Do ponto de vista cultural, ele não tem dúvidas de que haverá nuances, com sociedades mais individualistas ou mais coletivas. “As culturas ocidentais dominantes, como a nossa, costumam ser mais individualistas. Isso significa que, para nós, o bem-estar individual costuma estar na frente do bem-estar coletivo na nossa escala de valores. Em uma cultura assim, é mais fácil que se desenvolvam personalidades gananciosas. Ao mesmo tempo, temos uma cultura inclusiva”, pondera, detectando o paradoxo e a complexidade do tema.

“Geralmente, as pessoas se preocupam com o bem-estar dos grupos mais vulneráveis, como idosos, crianças e grávidas, por exemplo. Esse costume facilita o desenvolvimento de personalidades que não pensam somente em si mesmos, ou seja, que sejam menos egoístas e, por isso mesmo, menos gananciosas, ainda que ambiciosas”, finaliza. 

Efeitos das redes sociais

Se uma pessoa ambiciosa cruza a linha que a leva para o terreno da ganância, a solução mais prática é refletir sobre o que mais importa em sua vida. Essa é a dica do psicólogo Rodrigo Tavares Mendonça. “Certamente ela refletirá sobre as pessoas importantes para ela. Então, ela precisa reconhecer que depende parcialmente delas, que não pode ignorá-las ou prejudicá-las, que o seu bem-estar depende do bem-estar delas. Alcançar os objetivos individuais e viver na solidão ou viver sem o amor das pessoas que realmente importam não vale a pena”, declara.

O especialista não deixa de notar a influência crescente das redes sociais na nossa vida, alterando também os padrões relativos à ganância e à ambição. “As redes sociais promovem a comparação. Os usuários são bombardeados todos os dias por publicações que mostram os outros aproveitando a vida, sendo bonitos, felizes ou ricos. Assim, as pessoas começam a comparar sua vida real com essa vida postada pelos outros. A comparação é um problema por muitos motivos, mas especialmente porque essa vida postada não traduz, muitas vezes, a vida real dessas pessoas. Elas podem estar tristes como você, ou ainda mais tristes. Mas isso não aparece em seus perfis”, alerta. 

Segundo ele, “a ganância pode ser incentivada nesse contexto como uma forma de não ficar para trás e alcançar essa vida de status que os outros postam”. “Essa vida, contudo, pode não ser real ou pelo menos não conter a felicidade aparentada nos stories ou nos reels”, arremata.