Memória

Cenas africanas são encontradas em porão de casa centenária de Ouro Preto

Painel produzido por mãos escravizadas foi descoberto no Centro Histórico; Estudiosos estimam que desenhos datam do século 18 e novas análises serão feitas


Publicado em 01 de novembro de 2019 | 03:00
 
 
 
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O porão de uma centenária casa na rua Conde de Bobadela, popularmente conhecida como rua Direita, em Ouro Preto, estava relegado ao abandono. Mesmo quem morou naquela edificação, entrou pouco e por curtos períodos de tempo naquele lugar. Agora, o lugar desperta interesse e curiosidade da população, de pesquisadores e de turistas. 

Ocorre que, em 2017, por ocasião de uma reforma do imóvel, um dos atuais proprietários descobriu existirem desenhos em uma das paredes do porão. Provavelmente, as figuras foram feitos por pessoas escravizadas, que, no século XVIII, viveram confinadas naquele espaço – uma senzala. Nas ilustrações, que são tratadas como um tesouro por estudiosos e populares, há a representação de cenas coletivas.

As imagens levam a crer que o autor ou a autora certamente foi sequestrado da África para, em condição de escravidão, garimpar ouro na antiga Vila Rica, como a cidade de Ouro Preto era conhecida. As gravuras representam animais típicos da savana africana, como uma espécie de pássaro e um guepardo. Há ainda o registro de um pilão, que ainda não era um instrumento usada no país, e de uma embarcação, algo inusual para a região que, afastada do litoral, não é atravessada por rio de grande porte.

“Para nós, o povo negro, é uma revolução”, garante a historiadora e pesquisadora da cultura africana Sidnéia dos Santos. “O que sempre foi ensinado é que Portugal levou ouro do Brasil. Mas há mais camadas: os portugueses sequestraram e escravizaram pessoas em África, trazendo para cá um povo que tinha conhecimento em mineração, que era especialista nisso”, examina. “Essa é uma forma de contar um outro lado da história – ainda narrada de um prisma eurocêntrico – e ressignificar o papel do negro na constituição da cidade e da nossa identidade”, sustenta.

Diretora de Promoção da Igualdade Racial da Prefeitura de Ouro Preto, Sidnéia chama atenção para o ineditismo do achado: “Não havia nada parecido em Minas”. O painel, que ocupa uma área de aproximadamente 2,5 m de largura por menos de 1,5 m de altura, “nos permite traçar uma ponte através do Atlântico”. 

“As pessoas trazidas para cá eram da região da Nigéria, do Congo, de Gana e de Camarões... Elas eram especialistas em minério”, observa. Sidnéia lembra que, em Ouro Preto, muitas famílias negras, de africanos em diáspora, assinam o sobrenome Ferreira e pontua: “É justamente por conta dessa tradição”.

Reforçando a tese apresentada por ela, a embarcação representada na parede lembra aquelas que navegavam pelo rio Níger, na Nigéria. Agora, a Fundação Cultural Palmares, de promoção da história negra, planeja parceria com o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para que pesquisas sejam realizadas no lugar.

Família deseja preservar ilustrações

Uma obra de requalificação de um casarão, no Centro Histórico de Ouro Preto, foi o que levou à descoberta de desenhos feitos, possivelmente, por mãos escravizadas. Pensando em transformar o imóvel em um restaurante, a família de Philipe Passos iniciou a reforma em 2017. “O Eduardo, que trabalhava na obra, veio me perguntar dos desenhos”, conta Passos, que é empresário. 

“Moramos lá no início dos anos 90, mas o porão não era frequentado... Só agora tomamos conhecimento do painel”, diz. Tão logo soube, ele falou com Denise Maria Pignataro, 86, que viveu na casa entre 1933 e 1964. “No início, ela não se lembrava, mas depois recordou, dizendo que não ia muito lá (no porão)”, conta.

Há dois anos, de lugar abandonado, o espaço passou a atrair curiosos e estudiosos. Passos frisa que a família deseja preservar as gravuras.

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