Ele já serviu no Exército de Israel ao lado de um árabe que atuava como o oficial responsável pela casa de armas de sua base. O brasileiro Isaque Levy, que mora há oito anos em Jerusalém, é professor, especialista em Oriente Médio e história das religiões e guia de turismo em Israel e mostra como séculos de história moldaram a realidade atual. 

O conflito atual tem fundo religioso? Sim, pela primeira vez o conflito Israel-Palestino tem essa conotação, porque há lugares sagrados dentro desses territórios e o grupo fundamentalista Hamas. Até então, tinha identidade territorial, dois povos com dois movimentos de autodeterminação distintos disputando o mesmo território. Já ocorreram 54 guerras em Jerusalém que se deram não apenas pela religião, mas por sua geografia e conflito de interesses. Jerusalém talvez seja uma das cidades mais complexas do mundo e mais difíceis de se entender e explicar. O que a torna famosa no mundo inteiro, além de sua história, com ceerteza é seu aspecto religioso. Cidade de vales e montanhas, semiárida, com índice pluviométrico baixo, localizada na fronteira do deserto, não tem recursos hídricos suficientes. Então o que traz os povos até aqui? Basicamente, a fé. Mesmo antes da fé abraâmica, do monoteísmo, do judaísmo, do cristianismo e do islã. Registros arqueológicos de 5.800 anos atrás, uma era pagã, revelam a existência de povos que deixaram rastros de sua conexão com esse lugar por meio da fé. Com a ascensão das religiões abraâmicas, esse lugar se torna uma espécie de centro do mundo, com a convergência das principais crenças. No entanto, enfatizo que a respeito do conflito Israel-Palestino, o Hamas é o ator que leva ao conflito a questão religiosa. Até o seu surgimento era um conflito nacionalista territorial.

Qual a suposta alegação para o Hamas atacar Israel? O Hamas chama esse conflito de “Inundação de Al-Aqsa”, local onde estão a mesquita de mesmo nome, em Jerusalém – terceiro local sagrado para o Islã depois de Meca e Medina –, e o Domo da Rocha, conhecido também por “Cúpula Dourada”. Trata-se de um grande complexo, um nó geopolítico, que no passado era o local onde ficava o Templo de Salomão, o local mais sagrado do mundo para os judeus. Na Guerra de Seis Dias, em 1967, Israel entrega o local para a custódia jordaniana, que por meio do Waqf (organização de controle de lugares religiosos) passaram a controlar o lugar. Os judeus são proibidos de rezar nesse lugar. O Hamas divulgou uma notícia falsa dizendo que Israel pretende destruir Al-Aqsa e reconstruir naquele lugar o antigo Templo de Salomão e Herodes. Esse é o argumento religioso para essa operação. 

De que forma o Hamas atua sob o aspecto religioso? Em 1987, o Hamas é criado na Faixa de Gaza e mais tarde se torna um partido político. Em 2005, com a retirada unilateral de Israel da Faixa de Gaza, o grupo terrorista passa a controlar ditatorialmente toda aquela região. A princípio, o povo palestino da Faixa de Gaza elege democraticamente o Hamas, que passa a perseguir os opositores políticos, e nunca mais houve eleições. Implantaram um sistema baseado numa interpretação radical do Alcorão. De 2007 para cá, temos um aspecto religioso do conflito, quando o Hamas toma a Faixa de Gaza após uma violenta guerra civil, perseguindo seus opositores políticos. Tem início a ascensão popular do grupo terrorista, que impõe uma espécie de ditadura na região. A carta de fundação deles deixa isso claro: do rio ao mar, querem um Estado palestino com a destruição completa do Estado de Israel e o estabelecimento da Lei Islâmica nessa região. 

E como os judeus enxergam essa questão? Cada judeu religioso tem a expectativa de que seu templo seja reconstruído, porque uma vez que não há templo, a fé judaica é incompleta. Nos 613 mandamentos da Torá, mais da metade deles só podem ser cumpridos com a existência de um templo. O Shulchan Aruch, livro do século XVII, diz que os judeus, pela incompletude de sua fé e a inexistência do seu templo, estão de luto e, por isso, os judeus ultra ortodoxos se vestem de preto. Mas a religião não acredita que esse templo possa ser construído a partir de uma guerra. Não há interesse do Estado de Israel em retirar essas mesquitas e santuários e construir um templo judeu em cima. 

Existe alguma profecia bíblica sobre essa situação? A palavra “Hamas” significa “vioência” em hebraico e aparece 11 vezes na Bíblia judaica (Antigo Testamento). Uma das últimas referências a ela está no livro do profeta Isaías, que diz que chegaria o tempo em que não se ouviria mais falar em Hamas, em violência, e que judeus e muçulmanos conquistariam a paz.

Qual a sua expectativa em relação ao conflito? Acredito que essa guerra vai se estender por semanas ou meses, e a situação ainda vai piorar. Ainda temos a ameaça de envolvimento do Hezbollah, grupo paramilitar não governamental mais poderoso do mundo, sediado no sul do Líbano e fronteira norte de Israel. Israel certamente fará uma operação terrestre em Gaza com o objetivo de resgatar os sequestrados e estabelecer a paz na região para palestinos e israelenses. Rezamos para que os inocentes, de amboso os lados, tenham suas vidas preservadas e que Jerusalém se torne um símbolo de paz, que é o significado do seu nome. 

Uma terra chamada de “santa”, mas que vive banhada de sangue. Por que se mata tanto em nome de Deus? O termo “Terra Santa” não aparece necessariamente na Bíblia, o termo recorrente é “Terra Prometida”. Terra Santa é uma designação que passa a ser cunhada após o catolicismo, mas que também não está no cânone dos evangelhos. A Bíblia diz que em Jerusalém existe um lugar santo onde hoje fica o Domo da Rocha e a Mesquita de Al-Aqsa, o Monte do Templo, que era taqmbém o locao do Santuário de Salomão. A terra é santa, mas as pessoas nem tanto. Quem faz as guerras não é a geografia, mas as pessoas. Um dos motivos pelos quais Israel e Jerusalém tenham vivenciado tantas guerras é justamente sua localização. Estamos falando de uma faixa do Levante onde existiam as estradas do mundo antigo, a saber, a Via Maris (antiga rota comercial que ligava o Egito aos impérios que surgiram nos territórios da Síria, Anatólia e Mesopotâmia), o caminho do mar. Temos que entender que essa faixa territorial se conectava à Eurásia. A única forma possível de atravessar a Europa, a África e a Ásia era através do que é hoje Israel e Palestina. No norte, havia os assírios, persas, medo-persas, sumérios e babilônios, e, no sul, os egípcios e a África. Para guerrear, eles tinham que passar por Israel, e destruíram tudo pelo seu caminho.

Grupos terroristas e extremistas como o Hamas, Hezbollah, Fatah e Jihad Islâmica têm apoio dos muçulmanos? O Hamas, o Hezbollah (nome que significa “Partido de Deus”) e a Jihad Islâmica são grupos extremistas e fundamentalistas religiosos. O Fatah é descendente da Organização pela Libertação da Palestina, que era um grupo extremista no sentido nacional, mas não religioso. Eram terroristas que perseguiram judeus em Israel e em todo o mundo, depois se tornaram um partido político, que vai resultar na Autoridade Nacional Palestina. Não se pode afirmar que todos os palestinos apoiam esses grupos. No Oriente Médio, a região do Levante é a que tem o maior histórico de coexistência das diversas religiões. No período otomano, dos séculos XVI a XX, judeus, cristãos e muçulmanos viveram pacificamente a maior parte do tempo. 

Qual a história por trás do Monte do Templo ou Esplanada das Mesquitas? O Hamas acredita que Israel está vilipendiando o Monte do Templo/Esplanada das Mesquitas. Abraão teria ali sido testado por Deus no sacrifício de Isaque. Além disso, também é onde os judeus acreditam ser o lugar da fundação do mundo. Salomão constrói seu primeiro templo, que foi destruído pelos babilônios e depois reconstruído por Herodes. No ano 70 d.C, ele é destruído pelos romanos. Para o Islã, a sura (capítulo) 17 do Alcorão diz que Maomé fez uma jornada magnífica para um local incerto chamado Al-Aqsa, mas a tradição islâmica diz que ficava em Jerusalém. O nome Jerusalém não aparece nenhuma vez no Alcorão, mas a tradição antiga diz que o Domo da Rocha teria sido não só o local do Templo de Salomão, mas também palco de um dos acontecimentos mais significativos da vida de Maomé: aí ele teria ascendido aos céus e recebido os cinco pilares do Islã e também as cinco orações diárias. No ano 691, os persas constroem um edifício, considerado o mais antigo de pé no mundo muçulmano. Ele se torna um símbolo político e de resistência para os palestinos porque no coração de Jerusalém, no local mais importante do mundo para os judeus, eles têm um edifício que mostra a força islâmica. É uma espécie de Vaticano muçulmano. A grande preocupação dos palestinos é que os judeus possam retirar o santuário islâmico e a Mesquita de Al-Aqsa para a construção de um novo templo judaico. É importante deixar claro que essa preocupação é, a princípio, infundada. Não há nenhuma iniciativa por parte do governo de Israel nesse sentido. O que há são boatos utilizados por atores político religiosos que assim se utilizam dessa narrativa para inflamar os fiéis que os apoiam.

Como é a vida na Faixa de Gaza? O Hamas oprime a população e usa os fundos humanitários para a manutenção do terror, enquanto a população vive com menos de quatro dólares por dia, abaixo da linha da pobreza. Mais de 500 milhões de dólares são enviados anualmnente para Gaza, um valor que deveria ser utilizado para obras de infraestrutura e manutenção. Não diria que todos os palestinos querem a destruição do Estado judaico e estão de acordo com as ideias do Hamas. Por mais que esses grupos terroristas estimulem um discurso de ódio e preguem a impossibilidade da existência de dois Estados. O Hamas não representa o povo palestino.