Não há como refutar: a pandemia do novo coronávirus guarda especificidades que tornam o momento atual único – e isso, em termos globais. E por se tratar de um fenômeno em curso, várias questões só poderão ser respondidas bem mais adiante. Mas é fato que, no momento, mesmo no olho do furacão, em centros de pesquisas mundo afora, cientistas dos mais diferentes campos vêm se debruçando sobre o rol de acontecimentos para tentar delinear o que será o amanhã. Em Ribeirão Preto, por exemplo, pesquisadores da USP formularam um questionário que, aplicado à população, pretende analisar eventuais danos psicológicos que a pandemia possa vir a deixar nas pessoas.
Não é o único. O uso desmedido das chamadas “substâncias psicoativas” é uma das preocupações das autoridades. O Ministério Público do Ceará, por exemplo, recomendou um plano de contingência direcionado à população de rua, com particular atenção aos usuários de drogas, que, no caso, devem ser acolhidos em comunidades terapêuticas. Vale frisar que sob esse guarda-chuva das substâncias psicoativas está, por exemplo, o álcool. Mas, infelizmente, há outras tantas que demandam cuidados.
As substâncias psicoativas, também conhecidas como “psicotrópicas”, são aquelas que agem principalmente no sistema nervoso central, sendo capazes de alterar a função cerebral e, temporariamente, mudar a percepção, o humor, o comportamento e até mesmo a consciência. Tais substâncias são subdivididas em três grupos: depressoras, estimulantes e perturbadoras. O álcool insere-se no primeiro.
Mas como saber onde está a linha que separa o consumo tolerável do excessivo? O programador N.F. conta que tomou um choque ao perceber o montante de garrafas cujo conteúdo ingeriu nas primeiras semanas da quarentena. “Acontece que minha mulher tem, há anos, o hábito de separar as garrafas para encaminhá-las à reciclagem, serviço que foi suspenso no meu bairro nesse período. Para não descartá-las no lixo comum, ela passou a armazená-las em caixas de papelão, para quando a coleta seletiva voltar. Como essa é uma situação inédita, certo dia, me deparei com o volume de garrafas e, confesso, levei um susto. A maioria delas é de vinho, mas, a partir daquele momento, comecei voluntariamente a me policiar para não exagerar na dose”, afiança.
N. pertence ao grupo que está trabalhando em home office. A academia na qual praticava esportes também fechou as portas por ora. Enclausurado, encontrou na bebida, em particular no vinho, uma boa companhia para os momentos de leitura e reflexão sobre a atual situação. “Mas, agora, só duas taças por dia, no máximo”, assegura.
Doutora em saúde pública, presidente da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd) e psicóloga e psicoterapeuta com ênfase no tratamento dos transtornos relacionados ao abuso de drogas, Luciane Raupp lembra que a situação de isolamento social pode, ainda, agravar situações preexistentes, como quadros de ansiedade, angústia e depressão, em pessoas predispostas ou que já apresentem algum transtorno. “A indefinição e suspensão da vida neste momento, a distância nas interações sociais e principalmente o quadro de incertezas laborais, econômicas e sociais afetam a todos, de forma mais ou menos aguda, e o recurso ao uso de substâncias tende a ser mais utilizado, no mínimo como uma busca de lazer em uma rotina que se achata em uma repetição diária”, afirma.
Ela lembra que a interação das pessoas com as substâncias psicoativas é determinada por um quadro complexo, no qual interagem, por exemplo, os ditos fatores biopsicossociais.“Ou seja, diferenças genéticas, físicas, de gênero, econômicas, culturais, raciais, entre outras, impactam diretamente nas formas e padrões de uso, bem como nos diferentes danos que o uso problemático de substâncias pode acarretar”. Nesse sentido, pontua ela, a própria legalidade ou ilegalidade das substâncias atua de forma diferente. “A ilegalidade das drogas prejudica o acesso à saúde e vulnerabiliza os usuários ao tratá-los como criminosos. Por outro lado, no caso das bebidas alcoólicas, que são lícitas, o fato de o uso de álcool ser um fator incentivado pelo mercado, via mídia, tem um forte impacto na saúde pública, estando a substância fortemente associada a índices relevantes de produção de dependência, morbidade e mortalidade”, ressalta.
Embora a especialista não se refira a este fenômeno, vale lembrar que algumas lives recentes de cantores sertanejos causaram polêmica por mostrarem os artistas consumindo álcool durante os shows. Poucos dias atrás, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) apresentou uma representação ética contra ações publicitárias de bebida alcóolica especificamente nas redes sociais. No caso da live do cantor Gusttavo Lima, não só o artista foi advertido, como a própria Ambev. A discussão avançou a tal ponto que, para evitar discussões e celeumas, o sertanejo Matheus (da dupla com Kauan) anunciou a criação de um app (Live Live Brasil) que, entre outras funções, conseguiria limitar o público por idade. O aplicativo também viabilizaria ações solidárias. O convidado para inaugurar a plataforma foi o próprio Gusttavo Lima.
Tal como o entrevistado citado no início desta matéria, mesmo aqueles que fazem uso consciente e moderado do álcool devem, neste período, abrir a garrafa com uma luz vermelha em mente. É que o álcool, alerta Luciane, é uma substância com um grande potencial de se tornar perigosa. “Portanto, praticar o uso moderado é importante, assim como é fundamental conhecer os danos que o uso abusivo pode causar”, indica ela.
A psicóloga também enfatiza a adoção dos comportamentos indicados para minimizar as consequências, “como alimentar-se bem antes de beber, intercalar o consumo de álcool com o de água, consumir em um ambiente seguro e evitar a interação do álcool com outras substâncias psicoativas”.
Na contramão das pesquisas que já detectam um aumento nos pedidos de bebidas por delivery, o jornalista J.N. orgulha-se: “Estou sem beber e sem fumar porque estou preso em casa com minha mãe (risos), e, se ela sentir qualquer vestígio, vou ouvir. O que tenho sonhado que bebo e fumo não está no gibi! Mas vou tentando acreditar que isso faz bem pra mim, que estou me purificando, mudando hábitos, coisa e tal. Na verdade, ok, vou dar a mão à palmatória. Estou até me sentindo mais disposto e tenho feito exercícios diários, coisa que não fazia há tempos. Os ‘pesadelos’ dos tempos idos meio que ficaram para trás, e passei a dormir e a respirar melhor, não tenho mais aquela sudorese que encharcava lençóis”, diz.
Professor titular de psiquiatria da Escola Paulista de Medicina, o médico Ronaldo Laranjeira lembra que houve, em muitos casos, uma diminuição pela condição da pandemia. “É sabido que 80% do consumo de álcool no Brasil acontece fora de casa. Há várias pesquisas que mostram isso, temos mais de 1 milhão de pontos de venda de álcool espalhados pelo país. Assim, o impacto do fechamento dos pontos de venda foi enorme, a ponto de a própria Ambev estar com uma linha de financiamento (para ajudar aqueles mais impactados com a diminuição das vendas)”, explica.
Para ele, do ponto de vista da saúde pública, essa situação tem um aspecto muito positivo. “Mas, por outro lado, é complexo, pois o próprio confinamento deixa as pessoas mais ansiosas, mais desmoralizadas e até mais deprimidas. É um aspecto no qual a maior parte dos psiquiatras concorda, o de que, após a pandemia, teremos pessoas mais deprimidas, ansiosas – e, ainda, mais pessoas desempregadas. E esses são fatores que notadamente contribuem para o consumo de álcool. É difícil saber, sinceramente. É uma situação absolutamente nova”, afirma.
Laranjeira prossegue: “Sendo assim, o que podemos ter, por agora, são palpites. Acho que o consumo do álcool, em nível global, diminuiu, mas não quer dizer que, para alguns grupos, ele não vá aumentar/piorar com o confinamento e, eventualmente, que isso possa impactar, por exemplo, o aumento da violência doméstica. É uma moeda com face dupla, difícil prever. Não há estudos que possam apontar com certeza as consequências dessa situação tão específica, sejam elas sociais ou psicológicas, como o aumento do número de pessoas com depressão, ansiedade. Por ora, é meio especulativo”.
Violência doméstica. E se Laranjeira cita a questão da violência doméstica, Luciane Raupp endossa: “O álcool é a substância psicoativa mais relacionada à prática de diferentes violências, entre as quais se destaca a doméstica. Informações sobre o aumento do registro de casos de violência dirigida às mulheres e de expedição de medidas protetivas durante o período de isolamento mostram que essa condição social agrava a situação de mulheres vítimas de violência em seus lares, o que afeta a família como um todo. E, nesse contexto, a ocorrência frequente do uso abusivo de álcool atua inegavelmente como facilitador dessas situações. Portanto, ele precisa ser encarado como uma prioridade para a rede de atenção e proteção à mulher, a qual só é realmente efetiva se bem equipada e capaz de agir com a agilidade e eficácia que essas situações requerem”.
Além disso, ela entende que, para prevenir que o isolamento venha a agravar a situação de violência vivida por mulheres que ainda não conseguiram romper com o ciclo da violência doméstica, é necessária a abordagem do tema de forma direta e frequente pela mídia, “promovendo campanhas acessíveis de conscientização em que o tema deixe de ser um tabu e incentivando o fortalecimento de redes comunitárias e familiares de proteção às vítimas”.