“Tadinha dela, já é professora. Ainda receber o que o professor recebe, que é quase nada. Coitada, deixa ela. Meu baile tá R$ 70 mil, 30 minutinhos em cima do palco, eu ganho R$ 70 mil. Ela não ganha nem R$ 5.000 pra ser professora, às vezes”. Foi assim que MC Pipokinha respondeu a uma seguidora que disse ter discutido com uma professora após ouvir dela críticas à cantora. A reboque de toda a repercussão do episódio, que gerou reação negativa até entre fãs de Pipokinha, shows dela foram cancelados na última semana, e ela própria chegou a publicar uma nota, assinada por sua advogada, em que alega ter sido “interpretada por alguns nichos de maneira equivocada”.
“É sempre muito desconfortável, gerando repercussões nocivas, quando alguém que tem espaço na mídia usa esse espaço para nos atacar. Assim como nós sabemos da influência que temos sobre nossos alunos, da importância do que falamos, de como conduzimos a dinâmica na sala de aula e até fora dela, a categoria dos artistas e influenciadores também deveria ter responsabilidade sobre suas ações e falas”, critica Isabela Catrinck, 31, que atua na educação básica. Ela complementa que a cantora poderia, em vez de agir com desdém, ter falado a seus seguidores sobre a importância do diálogo entre aluno e professor em um país que lidera o índice de violência contra docentes, gerando consequências na saúde física e emocional desses profissionais.
“Tanto eu quanto vários colegas viram essa fala dela com indignação, mas sem surpresa, pois vivemos em um contexto de desvalorização do ofício das professoras e dos professores”, acrescenta Isabela, para quem, portanto, o posicionamento de MC Pipokinha, embora seja individualmente lamentável, é também sintomático de um fenômeno social coletivo e é oportunidade para uma discussão mais ampla.
No mesmo sentido, a professora Thaís Cláudia D’Afonseca, 45, que atua no ensino superior, acredita que, mais do que criticar o posicionamento pessoal da cantora, a questão se coloca como um problema maior. Ela avalia que, culturalmente, a docência vem sendo cada vez mais desmoralizada. “Não é só sobre como uma influenciadora se coloca isoladamente”, diz. “A verdade é que vivemos um cenário de extrema desvalorização da educação e dos educadores, que passa também pela desconstrução da ideia de autoridade em sala de aula”, assinala.
“A gente já lida com essa lógica de desvalor diariamente, inclusive por ação de alguns políticos ou de patrões que, ano após ano, tentam retirar de nós direitos já conquistados”, critica Isabela, citando que as condições de trabalho ruins e a remuneração inferior à de outras carreiras se somam a esse tipo de pensamento.
De fato, segundo pesquisa do Instituto Semesp divulgada no ano passado tendo como base dados de 2020, um docente do ensino médio recebe, em média, 20,4% menos do que trabalhadores de outras categorias que também têm diploma universitário. Além disso, outros vários desafios estruturais se impõem à rotina desses profissionais. Conforme o Censo Escolar da Educação Básica, do Ministério da Educação (MEC), publicado em 2021, 3,2% das escolas públicas não possuíam banheiro, 20,5% não tinham acesso à internet banda larga, e 26,6% delas seguiam sem coleta de esgoto.
Esse conjunto de fatores ajuda a explicar a razão de a carreira na docência parecer cada vez menos atrativa para a juventude. Uma realidade que pode, no futuro, motivar um apagão no sistema de ensino do país. Segundo o Semesp, o envelhecimento da categoria, cujos profissionais têm idade média acima dos 50 anos, subiu 109% entre 2009 e 2021. Já o número de docentes com até 24 anos caiu 42,2% no mesmo período. Se o ritmo de renovação de quadros permanecer no atual patamar, a previsão é que, até 2040, haja um déficit de 235 mil professores em todas as etapas da educação básica.
‘Quase um sacerdócio’
No mesmo vídeo em que respondeu a uma seguidora, MC Pipokinha disse que os professores precisam “amar muito a profissão”, uma vez que precisam “ouvir desaforo do filho dos outros”. Ela ainda diz, em tom interpretado como de desdém, que esses profissionais são muito humilhados.
Ironicamente, as frases vistas como um ataque à categoria revelam uma realidade. “Hoje, a docência é quase como um sacerdócio. Nós sabemos da importância do nosso papel na sociedade, que somos um contributo social, agentes de transformação do outro e da comunidade, que somos a base para o avanço social, político, econômico e humano do país”, comenta Thaís Cláudia D’Afonseca, ponderando que, para além dessa motivação subjetiva, esses profissionais precisam ser valorizados em termos práticos.
Isabela Catrinck concorda. “Realmente, nós, que lidamos com vidas em processo de formação desde a mais tenra idade, temos consciência do tamanho da nossa responsabilidade e temos comprometimento proporcional. Mas isso não significa que nosso trabalho é, na verdade, uma doação. Devemos ser mais valorizados, sendo, por exemplo, mais incentivados à formação continuada”, avalia.
Essa autoconsciência do valor do próprio trabalho pode ser percebida nas respostas obtidas em uma pesquisa conduzida pelo Instituto iungo em parceria com o Núcleo de Novas Arquiteturas Pedagógicas da USP (NAP/USP). Divulgado pelo canal de TV por assinatura CNN Brasil, o levantamento indicou que a educação é um ponto central nos projetos de vida de 80% dos professores da rede pública no Brasil.
Os resultados do estudo, realizado em 2021 com 2.000 professores, mostram que 83% dos docentes planejam continuar lecionando e têm três temas principais em mente: busca por excelência e qualidade na educação (presente em 88% das respostas); adoção de ética profissional e pessoal (56%); e compromisso com a educação e profissão (100%). Ademais, 50% dos entrevistados querem impactar positivamente a vida dos estudantes e da comunidade. Vale ressaltar que a pesquisa foi realizada durante a pandemia da Covid-19, que obrigou a suspensão das aulas presenciais.