Sexualidade

Donas do próprio desejo, mulheres buscam espaços acolhedores para o sexo casual

Presença de mulheres em aplicativos com foco em transas descompromissadas ainda causa surpresa e até espanto


Publicado em 14 de janeiro de 2022 | 03:00
 
 
 
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Desde o início de dezembro do ano passado, pipocam nas redes sociais comentários sobre mulheres cis, hétero e bissexuais, que foram ao Grindr – um aplicativo com foco em sexo casual e usado predominantemente por homens que desejam transar com outros homens – em busca relações, digamos, menos burocrática. E o fato de obterem sucesso, conseguindo satisfazer seus desejos, a partir de interações mediadas pela ferramenta, virou motivo de surpresa e até de espanto. 

Vale lembrar que, embora associado a um espaço de convivência exclusivamente gay, o Grindr reúne também homens cis e trans que se identificam como bi ou pansexuais – usuários que, portanto, podem, sim, ter interesse em transar casualmente com mulheres, sejam elas cis ou trans, que também podem estar no aplicativo e ter interações entre si.

Aliás, desde 2017, a plataforma permite o cadastro de pessoas de quaisquer gêneros e orientações sexuais. Existem, inclusive, campos para definir o perfil de pessoas que se está buscando naquele espaço. Não há, portanto, nada de propriamente novo nessa história, que segue sendo retratada como um feito exótico. 

Para Victor Hugo de Souza Barreto, doutor em antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), além do susto de se ver mulheres cis em um espaço em que elas ainda são pouco frequentes e da surpresa atrelada ao fato de poucas pessoas se atentarem para a presença de pessoas bissexuais no aplicativo, que costuma ser visto como reduto exclusivamente gay, há também estranhamento quanto à postura de mulheres que assumem desejar um encontro sexual descompromissado e não se furtam de buscar ativamente por isso. 

“Há um certo mal-estar social quando alguém do gênero feminino assume o protagonismo do próprio desejo, pois ainda há dificuldade de se entender que a mulher, cis ou trans, pode ser sujeita de seu próprio gozo. Isto é, pode ser alguém que deseja, e não apenas alguém que se deixa ser passivamente desejado pelo outro”, pontua. “E, no caso das cisgênero, há também a crença de que elas não deveriam ter experiências sexuais que não estejam associadas à ideia de constituir família, sendo monogâmicas e, preferencialmente, buscando parceiros homens”, complementa. 

O psicanalista Hugo Bento, que é mestre em psicologia e desenvolve pesquisa na área de gênero e sexualidade, concorda. “Para alguns, ver a mulher tomar a atitude e buscar por uma relação descompromissada chega a ser motivo de desconforto. E isso acontece até mesmo dentro de relacionamentos estáveis e monogâmicos. Não são raros os casos em que o parceiro estranha quando sua parceira passa a demonstrar mais interesse pelo sexo do que ele. Não é à toa também que alguns homens têm dificuldade de manter a ereção ou até mesmo brocham quando vão transar com uma mulher que teve a atitude de propor a relação. E isso acontece porque, culturalmente, a iniciativa sexual é estimulada e legitimada quando parte do homem – de quem é esperada uma atitude máscula, viril, sendo a ação da conquista sexual um dos requisitos para se confirmar essa virilidade”, analisa. 

Experiências assim já foram vivenciadas pela analista de comunicação Marcella Carvalho, 36. Ela garante que, desde os 17, nunca teve problema em “tomar a iniciativa” e propor sexo a algum pretendente. “Não tem essa de ‘dar corda’, de esperar o cara ‘chegar’. A gente, que é mulher, também tem desejo, também quer. E não quer perder tempo”, diz, admitindo já ter visto algumas de suas paqueras intimidadas diante de sua assertividade. “Eu já passei por episódios assim várias vezes”, observa Marcella, lembrando que, em algumas situações, ainda que inicialmente o alvo do flerte correspondesse ao desejo, havia um recuo diante de um convite para que seguissem a noite em outro lugar. 

Estereótipos. “Se o fato de a mulher sustentar o próprio desejo, mesmo que dentro de um aplicativo, ainda causa tanta repercussão, é sinal de que esses estereótipos de gênero seguem muito presentes, mesmo que não sejam verificados na prática. É sinal de que ainda temos muita coisa para desconstruir”, salienta Hugo Bento. 

O psicanalista pondera que a presença de mulheres em plataformas como o Grindr desmonta ainda um outro mito. “Ao mesmo tempo que demonstra que elas são, sim, agentes de seus próprios desejos, essa história atualiza o lugar sexual da homossexualidade, indicando não ser sustentável a afirmação de que homens gays seriam mais atirados e teriam práticas eróticas mais exacerbadas. Verificamos, a partir desses relatos, que qualquer pessoa, independentemente de gênero e orientação sexual, pode optar por relações casuais, que essa não é uma realidade só de um grupo social”, diz. 

O digital como alternativa. Victor Hugo Barreto observa que, em comparação com pessoas do gênero masculino, mulheres têm, historicamente, poucos espaços de experimentação da sexualidade.

“No caso dos homens que buscam relações heterossexuais, há as casas de massagem e cabines eróticas, por exemplo, que possibilitam a vivência do sexo casual. Para os que buscam uma transa homossexual, há as saunas e os cinemas pornôs. Já para as mulheres, mesmo ambientes que permitem escapar à norma, como as casas de swing, costumam funcionar a partir de uma lógica heteronormativa. Nesses locais, as frequentadoras podem até ser estimuladas a ficar umas com as outras, mas, geralmente, isso acontece mirando saciar o desejo masculino”, observa. O antropólogo lembra que, por muito tempo, além do apagamento, a sexualidade feminina tinha como espaço as clínicas médicas, sendo tratada como uma disfunção. 

“Nesse sentido, o que esses relatos de mulheres que usam aplicativos como Grindr para conseguir uma transa sem muita burocracia expõem de mais novo diz respeito ao uso do digital para suprir essa carência de espaços para a experimentação sexual”, acrescenta.

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