Realização pessoal

Economia frágil leva brasileiros a adiarem sonhos

Economia instável e moeda desvalorizada interferem nos planos de realização pessoal, gerando sensação de frustração


Publicado em 09 de maio de 2022 | 03:00
 
 
 
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Já estava tudo certo para que, em 2020, Jéssica de Souza, 30, iniciasse um intercâmbio para desenvolver as habilidades na língua inglesa. O projeto era um sonho antigo, que, em razão do surgimento do novo coronavírus, precisou ser adiado. “Foi frustrante, mas não havia escolha, e eu não tinha nenhum controle sobre essa situação”, lembra. Agora, com a pandemia da Covid-19 dando sinais de estar entrando em sua fase final após as campanhas de vacinação realizadas globalmente, a mineira passou a alimentar esperanças de conseguir realizar o projeto. Contudo, vê a escalada da inflação e o aumento do custo de vida ameaçarem a concretização de seus planos. “Hoje, não tenho certeza se as reservas que fiz serão suficientes, até porque o real está muito desvalorizado frente a moedas estrangeiras”, pontua. 

De fato, segundo um levantamento feito pela Economatica em março deste ano, o real ocupa a 12ª posição entre as moedas que mais se desvalorizaram em relação ao dólar. Já em relação à inflação, um relatório divulgado na quinta-feira (5) pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostra que o país fica em terceiro lugar entre as nações do G20, grupo das maiores economias do mundo, em que a população mais perdeu poder de compra. No Brasil, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) atingiu 11,3% no acumulado em 12 meses até março. Na Turquia, o índice é de 61,1% e na Argentina, 55,1%. 

A exemplo da experiência de Jéssica, essa realidade hostil tem feito outros tantos brasileiros adiarem sonhos e projetos de vida na esperança de que, no futuro, esse cenário se torne menos árido. Reflexo desse fenômeno é percebido pelo setor automotivo. Segundo a Associação Nacional das Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), o aumento foi de 10,9% nas vendas e de 11,4% na produção em comparação a fevereiro. Mesmo assim, os números do primeiro trimestre de 2022 não alcançaram resultados tão bons como no mesmo período no ano passado. Na comparação, o resultado representa um encolhimento de 23,2% do setor. 

Para a psicóloga clínica Sônia Eustáquia, é fundamental saber a hora de refazer planos e adiar projetos. Ela alerta que forçar que um plano se desenrole mesmo em um ambiente que concorre contra ele tende a ser mais desgastante e frustrante que deixar de realizá-lo naquele momento.  

Nem sempre, porém, essa decisão será fácil. Sobretudo em uma sociedade que costuma exaltar a força de vontade como determinante para que objetivos sejam alcançados e supervaloriza a performance individual e cobra por resultados, ignorando, muitas vezes, contextos e singularidades de cada vivência e situação. “Muitas pessoas se culpam quando se dão conta de que não vão conseguir alcançar aquele objetivo pelo qual vinha trabalhando, mesmo que esse impedimento fuja do seu controle, como no caso da pandemia”, destaca Sônia, assegurando que esse excesso de responsabilização é muito nocivo individual e coletivamente. 

A especialista aponta que, quando a situação não é bem elaborada, a sensação de frustração tende a ser maior. Isso contribui para que situações de crise, sanitária, política ou financeira, favoreçam a manifestação de distúrbios e transtornos de ansiedade e de humor, além de levarem ao crescimento de queixas e doenças psicossomáticas. Ela ainda alerta que outro efeito colateral do adiamento é o abandono do projeto. “Se a pessoa fica muito decepcionada, pode se sentir desmobilizada e paralisada, chegando a abandonar sonhos que, mais para a frente, poderiam ser concretizados”, diz. 

“Para evitar esses problemas, o ideal é que esses planos sigam sendo alimentados, mesmo quando adiados. Se a pessoa entende que está pisando no freio, refazendo a rota, vai entender que continua trilhando o percurso que, mesmo que tenha se tornado maior, vai levar ao seu sonho”, sugere. A espera maior, portanto, pode ser usada para que o sujeito se prepare melhor para o que está por vir. “Se é uma viagem, poderá se planejar mais para conhecer aquele destino; se comprar um carro, poderá investigar melhor quais os melhores modelos para ela”, cita. 

Planejamento 

Do ponto de vista financeiro, Jéssica Oliveira, líder regional da XP Inc em Minas Gerais, sustenta que é preciso ter sabedoria para perceber a hora de retardar planos, mas argumenta que, se houver planejamento, imprevistos acontecerão menos. Para ela, uma boa educação financeira ou, pelo menos, uma orientação de investimento eficiente podem garantir mais estabilidade e reduzir as chances de, por razões econômicas, sonhos precisarem ser adiados.  

“É claro que, quando falamos de pandemia e de outros fenômenos que não estão sob nosso controle, mesmo com máximo planejamento, pode ser necessário adiar um projeto. Mas, quando se fala em vida financeira, algumas medidas podem ajudar a amortecer impactos externos”, sugere. “Existem, por exemplo, estratégias de investimento que ajudam a pessoa a se proteger de um cenário de inflação, como no caso dos investimentos que pagam em IPCA+, como títulos públicos”, assinala. 

Ela recomenda que, em vez de guardar dinheiro no colchão e vê-lo perder valor, investi-lo em uma carteira diversificada a fim de se ter uma rentabilidade sustentável. 

A especialista ainda pondera que, em certas situações, é preciso usar a criatividade para alcançar um aumento de renda e recorrer a sacrifícios para economizar, como, por exemplo, optando por marcas mais baratas na hora de ir às compras. 

Começando. “Para quem tem um negócio, a primeira recomendação para ajustar a vida financeira e melhor se planejar é separar os recursos da pessoa física dos da pessoa jurídica”, pontua Jéssica Oliveira. E, para quaisquer indivíduos, é fundamental se organizar financeiramente. 

“Eu costumo falar que o dinheiro manda na maioria das pessoas, o que está longe do ideal. Para que eu tenha controle sobre meus gastos, preciso reconhecê-los. Assim, posso dizer para onde meu dinheiro vai, e não deixar que ele me diga para onde posso ir”, cita. “Se a gente não sabe onde vai gastar, acaba sendo vencido pelo marketing e gastando de forma impensada. Então, para começar, precisamos saber qual é a nossa renda e, com essa informação em mente, devemos pensar o que queremos construir”, sugere. 

Regra 70/30. “Quando você conseguir visualizar seus ganhos e seus sonhos, pode, então, pensar em como usar esses recursos. Um modelo que ajuda quem está começando é o dos 70/30. Nesse caso, 70% do que você recebe será gasto com o hoje, e outros 30% serão investidos em projetos para o futuro”, explica. 

E essa divisão pode ser ainda mais detalhada. A consultora recomenda a seguinte estrutura como guia: 

  • 55% da renda deve ser usada para cobrir despesas essenciais, como alimentação, moradia e outras contas 
  • 20% vão para objetivos de médio e longo prazo, como fazer uma viagem ou comprar um carro ou um imóvel 
  • 10% podem ser usados para gastos eventuais, como despesas com lazer ou mesmo para cobrir pequenas emergências
  • outros 10% podem ser aplicados pensando na velhice, focando a aposentadoria 
  • por fim, 5% vão para despesas com educação e formação, como cursos de idiomas e livros 

Cresce número de investidores brasileiros 

Aproximadamente 52 milhões de brasileiros – número que representa 31% da população – investiram em produtos financeiros no ano passado, conforme aponta a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). Desses, 52% são da classe A/B, 29% da classe C e 16% da classe D/E. 

No caso dos brasileiros da classe D/E, a principal motivação para a realização de investimentos é o sonho da casa própria. É o que indica a pesquisa Datafolha encomendada pela Anbima e divulgada na sexta-feira (6). De acordo com o levantamento, 34% das pessoas com renda média per capita de R$ 862,41 focaram a compra de um imóvel em 2021. Já entre os investidores de classes A, B e C, o percentual ficou em 28%.

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