Às 20h17 do dia 20 de julho de 1969, um domingo, o módulo lunar Eagle, tripulado por Neil Armstrong (1930–2012) e Edwin “Buzz” Aldrin, pousava na superfície rochosa da Lua. Seis horas mais tarde, sob o olhar apreensivo e entusiasmado de milhões de terráqueos que a tudo acompanhavam pela TV, os dois astronautas americanos ainda passeariam por aquele satélite, imprimindo marcas não apenas sobre a poeira lunar, mas também sobre a história da humanidade.
Agora, completando-se 50 anos desde essa primeira expedição, é sensível que cada vez mais pessoas têm duvidado que algum dia o homem tenha pisado em território lunar. No Reino Unido, por exemplo, uma pesquisa de 2009 apontou que 25% da população era cética em relação ao feito. Em 2016, o índice havia saltado para 52% – ainda que depois do feito de Armstrong e Aldrin mais dez homens, em cinco missões distintas, tenham voltado a visitar o satélite e que existam evidências múltiplas e científicas da passagem humana por lá.
E se a efeméride põe o episódio em evidência, vale dizer que este não é o único consenso científico que vem sendo sistematicamente questionado por um contingente progressivamente maior de pessoas. Juntam-se a ele, por exemplo: o movimento antivacina, que associa campanhas de imunização, entre outras coisas, ao aumento das taxas de autismo; a negação do aquecimento global, vista como um complô dos países desenvolvidos para frear aqueles que estão em desenvolvimento; e até mesmo a crença de que a Terra não seria esférica, mas sim plana.
Diante de tudo isso, estudiosos e mesmo leigos buscam compreender o que aconteceu para que um volume crescente de cidadãos venha se permitindo convencer por teorias conspiratórias. Detalhe aterrador: pesquisadores identificam no fenômeno um potencial risco à democracia moderna.
Antes do passo, a dúvida
Teorias da conspiração, é claro, não são exatamente novidade. A ideia de que tudo não passou de uma farsa, de uma encenação hollywoodiana, é mais antiga até mesmo que a própria missão Apollo 11. Sim! Antes mesmo do histórico acontecimento havia quem dele duvidasse. É o que lembra o astrônomo amador Marcelo Macedo Moura, 72. Naquele domingo de 1969, aos 22 anos, ele assistia a tudo pela TV, na casa da então namorada. Estavam tomados de expectativas e temiam que a transmissão não chegasse aos lares brasileiros – 41% da audiência se sintonizava ao episódio. Quando finalmente aconteceu, vibrou.
Desde a adolescência, Moura já se entendia como um astrônomo amador – vocação que se incorporava ao espírito daquele tempo. O pioneiro satélite soviético Sputnik, expedição que inaugurou a corrida espacial dos tempos da Guerra Fria, alcançou a órbita terrestre quando ele tinha 10 anos. Assim, foi cultivando um olhar mais atento para o céu, para as estrelas, os planetas e outros corpos celestes. Alguns, todavia, mantinham uma postura cética em relação àquelas histórias.
“Sempre houve quem pensasse que era mentira. Mas era diferente: antes, na maior parte das vezes, quem duvidava era por não estar inteirado ou interessado”, lembra. Afinal, o acesso a informações era mais restrito. “Os tempos eram outros, a gente se correspondia por cartas... Veja: para estudar astronomia, a gente tinha que fabricar nossos próprios telescópios, e os livros e as revistas vinham em francês ou inglês – línguas com as quais não possuía familiaridade”, comenta, emendando que a dificuldade em se inteirar levava a uma falta de conexão entre o feito e a vida ordinária na Terra. “Nem todo mundo conseguia compreender os ganhos em tecnologia e desenvolvimento que a empreitada traria. Para muitos, aquilo era uma bobagem”, examina ele.
Hoje presidente do Centro de Estudos Astronômicos de Minas Gerais (Ceamig), ele não esconde o espanto ao constatar que, agora, mais pessoas duvidam que o homem um dia esteve na Lua. Aos olhos de Moura, tal acontecimento soa paradoxal: se antes a circulação de informações era mais restrita, atualmente, mais da metade da população mundial, de acordo com a ONU, tem acesso a um imenso manancial de conhecimento através da internet. Além disso, se, então, a perspectiva era de que a descrença podia ser justificada, em parte, por um menor acesso à educação básica, é seguro dizer que o mundo nunca teve taxas de alfabetização tão elevadas – de acordo com relatório global da Unesco, de 2016, 86% das pessoas com mais de 15 anos foram alfabetizadas.
Novos paradigmas
Para quem se debruça e busca esmiuçar o fenômeno, todavia, as mudanças estruturais que acompanharam o advento das novas tecnologias da informação ajudam a entender a ascensão da crença em “verdades alternativas”.
No 1º Colóquio Informação e Imaginário, realizado na UFMG, no ano passado, o professor da Escola de Ciência da Informação (ECI) Cláudio Paixão Anastácio de Paula discorreu sobre o tema, indicando que a conexão com a web tornou as comunicações mais rápidas e facilitadas. Esse imediatismo levou a uma redução da “capacidade de resistência à frustração”. “Se eu demoro a responder alguém, já é esperado que essa pessoa fique incomodada”, observa o doutor em psicologia social.
Anastácio de Paula chama isso de “cultura da urgência”. E é a partir dela que encontra algumas das explicações para a expressiva disseminação de teorias notadamente inverídicas. “Para evitar frustrações, precisamos dar retorno rápido, de construir respostas rapidamente... Então, quando uma questão é posta, é tentador que a gente caia nessa armadilha e se agarre a uma resposta que pode não ser a correta, mas que vai nos satisfazer”, observa. Assim, “se uma ideia é lançada e ela se conecta com um preconceito meu, sem me fazer refletir verdadeiramente, quase por um reflexo passo a reproduzi-la”, conclui.
Diante desse quadro e pensando em formas de escapar dessa caverna da desinformação, o psicólogo não titubeia: “É uma educação não apenas conteudista, mas também crítica, e é também a convivência com o diferente que pode nos salvar desse aprisionamento”, garante.
Desafio para a democracia
Duvidar que o homem foi à Lua ou ter a convicção de que a Terra seja plana pode soar como motivo de piada, algo apenas cômico e inofensivo. A desenfreada crença em “fatos alternativos”, porém, tem sido apontada como um risco – ou, no mínimo, um desafio – à democracia moderna. Afinal, o estrago provocado pelo negacionismo não se reduz ao que se nega, representando também uma quebra de confiança em relação às instituições e um dissenso acerca de temas que eram consensuais, como interpreta o professor e pesquisador do Departamento de Comunicação Social da UFMG Camilo Aggio.
“Quando falamos em democracia, estamos dizendo de um sistema de mediações que necessita de outras instituições fundamentais para que possa funcionar. A ciência, como forma de compreender o mundo e atuar nele, é uma delas”, situa ele. E se o fazer científico é posto em xeque, passa a ficar comprometida a credibilidade de pesquisas e de diagnósticos que servem para estabelecer políticas públicas. “Se não há confiança sobre os meios por que se investigam as verdades científicas, então consensos universais podem ser trocados por crendices”, diz.
A consequência é que, então, políticas públicas passam a ser postas em risco: uma campanha de imunização só trará os efeitos desejados se a população, massificadamente, se vacinar; da mesma maneira, só é possível estabelecer políticas acerca do meio ambiente ou sobre as drogas se há um consenso sobre qual é o problema em questão e sobre como se deve agir diante dele.
Dessa maneira, analisa Aggio, em uma sociedade estratificada, em que cada grupo acredita apenas no que quer, onde instrumentos e instituições são desacreditados, o fazer democrático fica ameaçado. “Esse negacionismo converte-se na construção de uma identidade política, que está chegando ao poder em diversas partes do mundo”, diz. A partir dessa perspectiva, então, decisões passam a ser tomadas à revelia da produção científica, tendo como base “crenças e idiossincrasias daquele grupo”, completa, em tom de alerta.
Biblioteca de Alexandria
O doutor em psicologia social Cláudio Paixão Anastácio de Paula recorre à história da destruição da célebre Biblioteca de Alexandria, no Egito Antigo, para criticar a forma como a retórica anticiência tem aflorado. “Carl Sagan (1934-1996), no seriado ‘Cosmos’ (1980), contava como aquele lugar produziu conhecimento durante 800 anos, mas seus estudiosos nunca questionaram a escravidão de então. Desconectada da realidade das pessoas, quando a biblioteca foi queimada, não havia uma mão para tentar impedir”, lembra.
“É uma autocrítica que faço na condição de professor universitário: o esforço de agora é algo que já devia vir sendo praticado há muito tempo. Estamos correndo atrás do prejuízo!”, reconhece ele.
Crença pautada pela identidade
A primeira viagem espacial tripulada por um homem aconteceu em 1961. Foi nessa expedição que o astronauta russo Yuri Alekseievitch Gagarin cravou o adágio: “A Terra é azul”. Provavelmente, mesmo que tivesse dito “e redonda”, ainda assim seriam muitos a duvidar não só da façanha, mas também da constatação.
Talvez o mais cristalino exemplo de uma teoria da conspiração, o terraplanismo vem conquistando espaço em todo o mundo. Nos EUA, uma pesquisa auferiu que apenas 66% dos jovens de 18 a 24 anos têm plena certeza de que vivemos em um planeta esférico de polos achatados. E entre aqueles na faixa de 25 a 34 anos, o percentual é acrescido em dez pontos. No Brasil estima-se que cerca de 11 milhões de pessoas acreditam que a Terra é plana – conforme pesquisa Datafolha recém divulgada indicando que a crença mobiliza 7% da população.
E, de fato, a curiosidade pelo assunto vem ganhando corpo nos últimos anos. Algo que pode-se constatar analisando dados organizados pelo Google Trends (uma ferramenta para mensurar os índices de busca em relação a algum tema). Ocorre que o instrumento de pesquisa registrou aumento de interesse para pesquisas que relacionam os termos “flat earth” e “terra plana”, nos EUA e no Brasil, a partir de 2015, alcançando um primeiro pico de interesse em 2016 – algo que, certamente, está associado “à difusão de crenças e aos debates que essa difusão enseja”, avalia a pesquisadora do CNPq e da Faperj Ana Maria Mauad.
Trata-se de algo que causa surpresa e costuma ser motivo de piadas. “A esfericidade da Terra é um dado observável, por meio dos telescópios, dos satélites, mas também a olho nu – ao vermos um navio na linha do horizonte, primeiro vemos o mastro e depois, aos poucos, o restante da embarcação vai aparecendo no horizonte”, observa Ana Maria, que é professora titular do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Identidade. Ocorre que, para negar essa verdade científica, mesmo diante de claras evidências, os terraplanistas precisam rejeitar uma série de outras constatações e se embrenhar em mais teorias conspiratórias – entre elas, tratar com descrença as imagens espaciais do globo terrestre capturadas por órgãos como a Nasa e refutar até mesmo a teoria da gravidade. Nesse sentido, a crença de que a Terra seria plana funciona como exemplo de como costuma haver uma convergência de teses afins: esse grupo de pessoas, afinal, forma uma comunidade que compartilha de uma visão de mundo conspirativa.
“A comunicação tem um papel importante nesse processo. Estamos falando muito em polarização, e isso também significa que, progressivamente, estamos nos informando através de grupos, em que argumentos contrários aparecem pouco... Há, aí, um isolacionismo tribal”, estabelece o professor de comunicação social da UFMG Camilo Aggio, salientando que é preciso observar, ainda, diversas outras variáveis. Assim, “guiados menos por suas convicções políticas e ideológicas, passamos a ter um comportamento pautado pela identidade”, diz.
Ao se colocar no papel de alguém cético, que duvida dos consensos científicos, essas pessoas passam a experimentar a sensação de pertencer a um grupo, pautado por esse identitarismo indicado por Aggio. Trata-se de algo que é flagrantemente constatado no documentário “A Terra É Plana” (2018), disponível na Netflix. Nele, dois expoentes da teoria, Mark Sargent e Patricia Steere, indicam como se sentem valorizados e até emocionados em participar do "movimento terraplanista". A sensação de que estão entre pessoas especiais, contestadoras, é óbvia também entre seguidores que não alçaram fama. Além disso, se evidencia que há grande dificuldade em abandonar essa comunidade. Em dado momento, Mark diz que, se tentasse se afastar, as pessoas que hoje estão à sua volta não permitiriam que assim o fizesse.
Teses conspiratórias têm estrutura semelhante
Crise
Teorias da conspiração, fake news, negacionismo, pós-verdade e a crença em fatos alternativos: diferentes entre si, esses fenômenos correlatos são vistos conjuntamente como sinais de uma crise epistêmica e de mediação.
Pesos iguais
Atravessa o negacionismo científico a pretensão de que consensos universais e crendices sejam tratados como iguais. “As disputas recentes em torno se houve ou não a ditadura militar no Brasil são um bom exemplo de um tema que enfrentamos: não se trata de ‘fatos alternativos’, pois há provas documentais da existência de um regime ditatorial no Brasil, mas de uma disputa pela memória histórica”, expõe a professora Ana Maria Mauad, integrante da Rede de História Pública.
Estrutura
Normalmente, teses conspiratórias são construídas de maneira gradual: partindo de um fato vultoso, lança-se dúvida sob a versão oficial e aponta-se um grupo poderoso, talvez secreto, que teria interesse em esconder a verdade. Costuma-se, ainda, relacionar o fato a acontecimentos do passado. Assim, primeiro cria-se uma expectativa de dúvida, de ceticismo e constetação, para em seguida encaixar uma resposta fantasiosa sustentada a partir de uma combinação de elementos, que podem ou não ser falsos. Esta é, de acordo com o livro “O papel das Teorias da Conspiração na Formação da História” (Moderna), do britânico David Aaronvitch, a estrutura das teorias da conspiração.
YouTube
Diversos especialistas apontam o YouTube como principal canal de disseminação de “verdades alternativas” e teorias conspiratórias. Por conta de seu mecanismo de indicações, a rede de compartilhamento de vídeos indicaria conteúdos cada vez mais extremistas. Além disso, as sugestões não distinguem entre aquelas com embasamento científico. Por isso, mensagens mais controvertidas, que geram mais engajamento, poderiam ser mais indicadas.
Mudança
Diante das denúncias, a plataforma de vídeos do Google passou a restringir as recomendações de conteúdos conspiratórios, banir aqueles que promovem assédio ou discurso de ódio e começou a desmonetizar os que, por exemplo, possuírem informações falsas.
Efeito
Artigo do pesquisador Pedro Paixão, publicado em junho pelo site do Laboratório de Conexões Intermidiáticas – Nuccon, da UFMG, analisou os efeitos das alterações a partir do tópico “Terra plana”. De acordo com apontamentos dele, vídeos conspirativos “não são predominantes ou centrais na rede”, mas ainda “têm uma presença considerável”.
A disseminação de informações fantasiosas, todavia, se vale cada vez mais da ausência de mediação e das relações interpessoais diretas. Na Índia, por exemplo, uma onda de linchamentos depois de falsos rumores levou o WhatsApp a limitar para 20 o número de pessoas com as quais se pode compartilhar uma mesma mensagem.
Fins eleitorais
No Brasil, o canal tem sido apontado como vetor de notícias fraudulentas, principalmente durante a última campanha eleitoral. Pesquisa da Ideia Big Data, divulgada em maio, sinaliza que 67% dos brasileiros reconhece ter recebido conteúdo do gênero naquele período.