Onipresente

Gambiarra: a celebração do improviso e da criatividade

Apesar de poder colocar pessoas em situações de risco, prática também tem seu valor


Publicado em 30 de agosto de 2021 | 04:30
 
 
 
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Por décadas, a imagem de um pedaço de palha de aço preso a antenas de televisores e de aparelhos de rádio foi quase onipresente nos lares brasileiros. Por muito tempo, a técnica, que garantia melhor qualidade na captação do sinal num período em que a transmissão digital era ainda uma realidade impensada, foi a melhor representação da gambiarra, que podemos definir como uma prática em que, recorrendo-se à criatividade, busca-se a solução improvisada para problemas do cotidiano, a partir de objetos acessíveis. 
 
Sempre motivada pela falta de recursos ideais, a gambiarra pode estar por trás de situações um tanto problemáticas e que podem colocar as pessoas em risco. É o caso das construções civis irregulares e do “gato”, como é chamada a ligação elétrica clandestina destinada a furtar energia. Mas há também situações inofensivas em que o remédio, que era para ser provisório, acaba se tornando definitivo. Como aquele chinelo que, recém-arrebentado, é reformado com um pedaço de arame ou com um prego. A depender da perícia de quem fez a operação, o improviso garante significativa sobrevida ao produto. 
 
Embora esteja umbilicalmente associada à ideia de precariedade – o que contribui para que esse conceito seja socialmente mal visto –, a gambiarra é cada vez mais celebrada. 
Nos museus, nos centros comunitários e nas ciências 
 
“No mundo inteiro, começa a ganhar força um movimento de valorização do desejo das pessoas de fazer as coisas com suas próprias mãos. Hoje, esse movimento, que era chamado de ‘do it yourself’ (‘faça você mesmo’, traduzido do inglês), já está consolidado e vem sendo nomeado como ‘maker’ (‘fazer’, traduzido do mesmo idioma)”, explica Yurij Castelfranchi, professor da disciplina de sociologia da ciência e da tecnologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 
 
Italiano radicado no Brasil, ele detalha que a iniciativa tem levado à popularização de laboratórios e centros culturais em que comunidades se encontram para fazer não outra coisa que não seja a famigerada gambiarra. “É uma forma de estimular as pessoas a buscar, de forma colaborativa, a solução inovadora de problemas, fazendo isso de forma coletiva, e não apenas individualmente”, observa. 
 
A tendência já chegou também a museus de ciência e centros de pesquisa. “Assim como nos espaços comunitários, muitas dessas instituições têm, agora, locais para que as pessoas participem de oficinas de ‘hacking’ ou ‘hackeamento’, que é outra palavra para falar da mesma coisa, ou seja, de gambiarra, que, em certo sentido, significa uma desobediência tecnológica, em que tomamos uma tecnologia e damos a ela outra destinação, diferente daquela que havia sido originalmente imaginada”, opina. 
 
Segundo a definição de Castelfranchi, pode-se dizer que a prática é muito mais comum do que imaginamos em um primeiro momento. “Usar um lápis, que foi projetado para escrever, para prender e firmar o cabelo é uma forma de gambiarra”, avalia o físico e sociólogo, ponderando que a prática vai muito além de subverter um objeto, emprestando a ele um novo sentido e função. 
 
“Há também a gambiarra conceitual, como no caso das pessoas que andam de skate, que inventam usos diferentes dos objetos de praças, fazendo de um corrimão um lugar para manobras”, destaca, refletindo que essa lógica é presente também no fazer científico. 
 
Um exemplo prático da aplicação do expediente nas ciências é apresentado pelo pesquisador Evandro Smarieri Soares, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em um artigo publicado em 2018, ele é enfático: “Gambiarra e permacultura (sistema de planejamento de ambientes humanos sustentáveis) têm muito em comum, principalmente se pensarmos a gambiarra como uma forma de reúso ou de extensão do uso dos objetos e materiais que temos à mão”. 
 
E, no campo culinário, vale mencionar que a chamada “cozinha criativa”, associada à capacidade de criação a partir dos ingredientes que se têm naquele momento, também expõe como a prática ganhou aderência e está cada vez mais “na moda”. 
 
Gambiologia 
O movimento de valorização da gambiarra é percebido como positivo por Fred Paulino, que se identifica como artista e “gambiólogo”. “Esta é uma oportunidade para rever esse conceito, que, por muito tempo, foi tratado de forma caricata, como algo exótico e até pejorativo, ficando associada àquela ideia de ‘jeitinho brasileiro’.
 
Com essa valorização, podemos pensar nessa temática de uma forma mais positiva. E faz todo sentido que seja assim, por a gambiarra ser, de fato, um recurso para a culinária, para a ecologia, para a educação, para a tecnologia e para outras áreas do conhecimento”, analisa. 
 
Para o artista, que trabalha mais de há dez anos com o tema, tudo o que é feito baseado em uma limitação de recurso, de material e de ferramentas, e consegue resultado satisfatório, em qualquer área, pode ser considerado um tipo de gambiarra. 
 
Contudo, Paulino faz ressalvas ao que pode se revelar uma visão romantizada dessa prática. “Ela pode também ser prejudicial à medida que passamos a nos contentar com soluções improvisadas, que estão longe de ser o ideal.
 
Quer dizer, por conseguir improvisar uma saída, não podemos deixar de reivindicar o acesso aos recursos para fazer as coisas como elas foram pensadas a serem feitas. Não podemos cair no engodo de acreditar que nossa habilidade de se virar com pouco faz que a precariedade deixe de ser precariedade”, avalia. “Resumindo, acredito que a gambiarra é positiva quando ela é uma opção, não uma necessidade”, conclui. 
 
Patrimônio 
Vista quase como um sinônimo de brasilidade, a gambiarra não é exclusividade nacional. “Essa é uma prática disseminada em todo o mundo, principalmente em países do sul global, em que o acesso a recursos é menor e, consequentemente, a necessidade de improvisação é maior”, examina Fred Paulino. Por isso, ele defende que não faria sentido falar no expediente como patrimônio brasileiro, mas como um bem comum à humanidade. 
 
Estigma 
Na avaliação de Yurij Castelfranchi, as definições de “gambiarra” e de “jeitinho brasileiro”, apesar de ter pontos comuns, são diferentes. “O primeiro fala de uma dimensão criativa para solução de problemas práticos. Já o segundo tem mais a ver com uma questão política e moral, relacionada a uma construção incompleta de Estado e de democracia, de forma que, diante de grande ineficiência das políticas públicas, a população passa a desconfiar da capacidade do Estado de resolver problemas e acaba buscando essas soluções nas brechas, muitas vezes buscando tirar proveito a partir de certa malandragem”, compara. 
 
Todavia, o sociólogo aponta que ambos os conceitos partem de uma mesma situação: “Estão ligados à necessidade que o brasileiro tem de, sem ter os recursos ideais, se virar nas adversidades”.

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