Toda quarta e sexta-feira, dona Lili, 80, deixa as portas de sua casa abertas para quem quiser se benzer. Quando a reportagem chegou à residência, no bairro Estrela Dalva, na região Oeste da capital, duas mães esperavam para benzer seus filhos, e, na saída, por volta de 16h45, outros dois pais chegavam também trazendo seus filhos. “Bença, vó. Tô todo sujo de escola. Tem como benzer hoje, vó?”, disse o pai, segurando o filho no colo. “Tem. Ainda tem sol, né?”, respondeu dona Lili. 

Benzedeira há mais de 40 anos, ofício que aprendeu com a mãe, a senhora natural de Ponte Nova, na Zona da Mata, conta como começou. “Lá em casa, mãe passou pra mim, falou ‘umas oração’, e eu fui fazendo. Não tive escola, o que eu sei está tudo guardado na cabeça. Agora a espinhela, um senhor aqui da rua que me ensinou a medir. Que é esse ossinho (disse apontando para o colo), para lá e para cá, aí que a gente sabe. Mau-olhado minha mãe me ensinou, é uma oração bem pequenininha”, disse.

Para saber se a espinhela está caída, tira-se a medida. Com um fio de algodão ou uma toalha, a benzedeira mede da ponta do dedo mínimo à ponta do cotovelo. Depois de um ombro ao outro. Se coincidirem as medidas, a espinhela está normal. Se não, está caída.

Viúva, católica, dona Lili mora com a filha e os dois netos e recebe em sua casa pessoas de várias partes da cidade, com um sorriso no rosto e sua fé. “Hoje veio uma porção de gente da Pampulha, todos com a espinhela caída. Acho que benzi uns 12 homens. Eu benzo até gente que é evangélico. Jesus é um só. E até enquanto Deus me der força eu vou benzer”, afirma.

No corredor estreito de cimento batido que dá acesso ao cômodo onde dona Lili realiza os atendimentos, em meio a plantas dependuradas, tanque de lavar roupa e um periquito azul na gaiola, a enfermeira Vanessa Silveira, 41, aguardava para benzer a filha. “Eu acredito e acho que mal não faz. Sempre quando ela não dorme bem à noite, fica mais irritada, ou, quando não se alimenta, eu trago para benzer, porque eu vejo que melhora. É como se estivesse tirando uma energia ruim e colocando a boa”, diz a mãe.

A dona de casa Maria, 83, também moradora da região Oeste, conta que aprendeu o cantar em voz baixa e o chacoalhar de ramos de ervas de arruda vendo as benzedeiras a que ela levava os filhos. No entanto, parou de benzer porque estes não aprovam a prática. No caso de dona Lili, a filha também não tem interesse em seguir com a tradição, mas a benzedeira já foi procurada por outras pessoas. “Teve uma senhora que já veio, trouxe um caderno. Eu falei umas orações pra ela, e ela escreveu tudo”, lembra.

Segundo o professor convidado da pós-graduação de ciência da religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Faustino Teixeira, essa tradição típica do catolicismo se mesclou com outras religiões. “Caracteriza-se por muita reza, pouca missa, muitos santos, pouco padre. Não se acabou, mas a linha de continuidade da tradição foi se enfraquecendo em razão de nem sempre filhos seguirem a trajetória dos pais, além do fato de ser muito perseguida por outras tradições”, analisa.

Documentário. A diretora Sílvia Batista Godinho decidiu dar espaço para as muitas histórias de mulheres responsáveis pelo tratamento místico em comunidades e produziu o documentário “Benzedeiras”. Filmado em São Sebastião das Águas Claras (Macacos), na região metropolitana, o documentário chama atenção para a resistência da tradição e está disponível no YouTube.

Decreto. Em 2016, a então presidente Dilma Rousseff assinou o Decreto 8.750, que cria o Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais, onde as benzedeiras também têm espaço. 

Pesquisas mostram que funciona

A ciência vem se interessando em decifrar como as experiências espirituais e religiosas se manifestam no cérebro humano e afetam, por exemplo, a saúde das pessoas. Uma das descobertas de neurocientistas da Faculdade de Medicina da Universidade de Utah, nos Estados Unidos, publicada na revista “Neuroscience Social”, é que essas práticas ativam áreas cerebrais ligadas à concentração e à recompensa, assim como acontece em situações que envolvem amor, sexo, drogas, música e jogos.

Outras pesquisas já demonstraram que, de modo geral, as pessoas com maior envolvimento religioso tendem a ter melhores níveis de felicidade, menos casos de depressão, de suicídio e de uso de drogas. No entanto, algumas formas de religiosidade podem ser deletérias.

As pesquisas científicas que abordam a cura pela espiritualidade têm crescido exponencialmente. Nos Estados Unidos, cinco universidades tinham incluído a espiritualidade em seus currículos acadêmicos em 1993. Sete anos depois, o número subiu para 65, e, em 2004, 84 escolas médicas ofereciam disciplinas optativas ou obrigatórias.

Minientrevista

Maria Bezerra
Assistente social e benzedeira
Escola de Benzedeiras


O que é o benzimento?

É o ato de você interceder, se colocar como intercessor entre uma força maior que está além de você, que pela fé consegue alcançar o grande mistério, e uma pessoa que está diante de ti, em sofrimento e em dor. Então, você se coloca como um meio de acessar uma força maior por meio do seu amor incondicional. É preciso ter amor no coração e o desejo de cuidar e curar o outro. O benzimento também é o ato de bem dizer o outro, trazer palavras benditas, palavras que trazem o bem-estar, conforto, que resgata a fé e o equilíbrio emocional.

Quem precisa se benzer?

Todo aquele que assim sentir. Porque a necessidade está naquele que busca. Então, se aquele que busca diz “preciso ser benzido”, então aquele que pede o benzimento precisa.

O que pode ser benzido?

Várias enfermidades, várias doenças, inclusive que não estão no protocolo médico, como o quebranto, espinhela caída, cobreiro, erisipela (infecção de pele), torcicolo, luxações, quebraduras, enfim, quase tudo.

Está ligado a uma religião exclusivamente?

O ato de benzer não se vincula a nenhuma religião. Tem benzedeiras que não têm nenhuma religião, outras são católicas, espíritas, enfim, podem ou não ter religião. Mas é imprescindível ter fé, e a fé está para além de qualquer religião. A fé é primordial no ato de benzer.

O que é benzer pra você?

É um grande ato de humildade, de amor, de desejo de cura do outro e de mim mesma também, porque o ato de benzer tem mão dupla. É um ato de dar e receber. Ao mesmo tempo que eu estou bendizendo, benzendo, cuidando e curando o outro, eu cuido e curo a mim mesma.

É possível aprender a benzer?

Sim. Periodicamente realizamos oficinas de benzimento porque acreditamos que é possível ensinar o que se aprende do mesmo jeito que era antes. Não é preciso ter o dom. As benzedeiras com quem aprendi me provaram que não precisa ser parente de uma ancestral direta, pois a nossa família cósmica está aí para acessar e compartilhar o conhecimento dela.