Miguel Fontes
Presidente e diretor da ONG ProMundo
Organização não governamental que atua em
diversos países do mundo buscando promover a
igualdade de gênero e a prevenção da violência

Qual análise você faz dessa antecipação?

Considero benéfica tanto para homens quanto para mulheres. A reflexão sobre comportamentos violentos (de todas as formas) deve ocorrer sempre o mais breve possível, e não há como esperar apenas o fim de um processo jurídico. Em contextos de violência, a não reflexão sobre esses comportamentos acaba por banalizá-los. O comportamento violento deve ser encarado sempre como uma anomalia, e um dos mecanismos saudáveis para seu tratamento é a utilização de metodologias educacionais e de reabilitação psicossocial.

Apesar de termos tido avanços, como a Lei Maria da Penha, por que ainda vivemos um recrudescimento desses ataques?

O senso de posse que muitos homens têm em relação a suas parceiras, muitas vezes em função de normas sociais equivocadas sobre masculinidade, traz consigo um sentimento quase imperceptível de que a violência é um mecanismo que pode ou deve ser usado pelo homem como forma de resolução de conflitos. Mas esse mecanismo é crime. Essa situação toma formas ainda mais graves quando associada a outros fatores, como uso/abuso do álcool e outras drogas, falta de apoio psicossocial, desemprego etc. Há também um maior movimento de denúncia das mulheres, que antes ficavam silenciadas. Todavia, o número crescente de feminicídio e das violências aponta para um crescimento latente de ataques contra as mulheres.

Existe um padrão no perfil das vítimas e dos agressores? 

A violência contra as mulheres atinge todas as classes sociais e idades. Em relação ao agressor, alguns determinantes estão associados a experiências passadas de violência como forma de resolução de conflitos (por exemplo, presenciar atos violentos praticados pelos pais), falta de participação em programas educacionais para o fortalecimento de vínculos e de reflexão sobre a masculinidade, falta de apoio psicossocial, uso/abuso do álcool e drogas, etc. Ou seja, não existe um padrão específico. Os homens não nascem violentos. A violência está associada a determinantes sociais, culturais, econômicas, entre outras que devem ser trabalhadas para que haja uma verdadeira mudança.

Trabalhar com o homem na modificação dos padrões socioculturais do machismo é também resguardar a mulher?

O maior beneficiado com a modificação dos padrões socioculturais do machismo é o próprio homem. Essa é uma compreensão importante. Lógico que essa modificação traz consequências benéficas para as mulheres, a família e a comunidade. Ou seja, além de contribuir para resguardar a integridade física da mulher, essa modificação garante que o conceito de saúde da OMS de que a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social possa ser atingido em sua plenitude pelos homens. Ao modificar a sua percepção sobre o exercício social da masculinidade, o homem estabelece novas relações com as mulheres e suas companheiras, nos diversos âmbitos da sua vida.

Como os debates e as abordagens acerca das questões de gênero podem impactar os casos de violência contra a mulher?

O homem não pode estar fadado a uma dinâmica apenas “racional” de vida, precisa se emocionar, falar sobre suas emoções, demonstrar seus descontentamentos afetivos sem medo de ser repreendido, participar das tarefas domésticas e do cuidado com seus (suas) filhos (as). Além disso, precisa entender e refletir sobre a importância da mulher no mercado de trabalho e de um ambiente que promove uma relação de respeito e valorização de competências no local de trabalho.

Quais foram os maiores avanços no que diz respeito à prevenção e à punição nos casos de violência contra a mulher? E as limitações?

O Estado brasileiro realmente avançou em relação à punição nos casos de violência contra a mulher. A Lei Maria da Penha é um marco fundamental. É uma lei também que se aperfeiçoa a cada dia. No entanto, na parte da prevenção ainda estamos muito longe do ideal. A disseminação de um trabalho preventivo e estratégico com homens (crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos) ainda é muito tímida. Precisamos incorporar novas metodologias nas áreas de educação, saúde, assistência social, cultura, esporte etc, ou seja, em todas as áreas em que as políticas públicas podem ser fortalecidas. O foco realmente não pode estar na repressão, pois já temos evidências suficientes que não modificam por si só as altas taxas de feminicídio e outros tipos de violência contra a mulher.

O ProMundo trabalha com jovens para questionar e transformar normas de gênero prejudiciais e contribuir para o empoderamento de mulheres. Como é esse trabalho?

O ProMundo trabalha com jovens e adultos para uma reflexão conjunta sobre as normas socioculturais que os colocam em risco, seja como agente, seja como vítima. E não é somente com grupos de homens que trabalhamos. Muitas jovens e mulheres participam de momentos de reflexão para entender os riscos de reforçar comportamentos machistas na sociedade. Temos trabalhado em diversas comunidades do Rio de Janeiro, por exemplo, com grupos de homens que querem refletir mais sobre questões relacionadas à paternidade. Estudos que realizamos no Brasil demonstraram que homens que participam dessas dinâmicas se tornam homens mais saudáveis, presentes e menos violentos. Mais de 5.000 homens no Brasil já participaram das ações do ProMundo.

Quais são os outros desafios que ainda temos pela frente? 

O maior desafio é oferecer oportunidades psicossociais e de reflexão já no início do processo de interação social e educativo. São diversos fatores que influenciam para que essa masculinidade machista seja construída ao longo do tempo. E são esses fatores normativos, sociais e culturais que devem ser questionados. Porém, eles somente podem ser questionados se forem oferecidas oportunidades concretas de reflexão nas escolas, nos postos de saúde, entre outros equipamentos públicos.

Você acredita que projetos de lei como esse evidenciam cada vez mais que as prisões por si só não dão conta de ressocializar e reintegrar agressores?

Com certeza. As ações meramente punitivas não são suficientes para a ressocialização e a reintegração de agressores. Isso principalmente em uma situação de encarceramento. Todas as ações de cunho social, cultural, educativo e de saúde devem ser disponbilizadas para que os homens possam fazer uma ampla reflexão de seus comportamentos e atitudes de violência. Nesse caso, a lei vai na direção correta, oferecendo uma oportunidade para que o homem, que já está se utilizando da violência, possa refletir sobre esses comportamentos.

“O homem não pode estar fadado a uma dinâmica apenas ‘racional’ de vida.”

“A modificação dos padrões do machismo beneficia o próprio homem.”

“Não existe um padrão. Os homens não nascem violentos.”