Desde a infância, Aline*, 26, sempre conviveu com uma mãe controladora. Horários e amizades eram sempre monitorados com extremo rigor. Com a adolescência, possíveis namorados precisavam passar por sua aprovação – ela chegava a exigir informações como a renda mensal dos pretendentes. Quando chegou à fase adulta, o comportamento materno – que já gerava atritos – permaneceu igual e até se agravou. Ao manifestar o desejo de frequentar ambientes diferentes daqueles a que sua genitora sempre a levava, como festas em boates, Aline percebeu que, de súbito, sua mãe passou a também querer ir a aqueles locais. E, se iam juntas, logo se formava uma dinâmica de competição: havia uma velada disputa em relação ao número de flertes em uma noite – e, normalmente, críticas eram feitas em relação aos rapazes pelos quais a moça se interessava. 

Hoje, Aline percebe que conviveu com uma mãe que, ao longo da vida, reproduziu o que agora reconhece como parentalidade tóxica – forma como se convencionou a descrever o comportamento daqueles pais que moldam sutilmente a vida de seus filhos, fazendo que as crianças acreditem que aquele estilo de vida é normal, mesmo que ocorram reiterados episódios de abusos físicos e emocionais, negligência e competitividade, como explica a psicóloga e educadora parental Fernanda Teles. 

Aline não tem dúvida de que a sua mãe nutre por ela legítimo amor materno. Contudo, crê que a genitora tem dificuldade em demonstrar tal sentimento. Por isso, mesmo que de forma inconsciente, tentou sabotar a construção da autonomia da filha, pois assim a teria sempre por perto. E, ao vê-la crescer e se tornar mais independente, apelou para a competição como forma de ganhar sua atenção – é no que acredita a moça, que ainda tenta lidar da forma mais harmoniosa possível com a mãe. Ela revela identificar em si problemas de insegurança e com a autoestima que, de alguma maneira, são decorrentes dessa relação tumultuada. Apesar da pouca idade, já realizou procedimentos estéticos faciais e corporais buscando melhorar a relação com a própria imagem e, na adolescência, sofreu com transtornos alimentares – episódios que associa à constante cobrança para que se encaixasse nos padrões de beleza exigidos por sua mãe. Fernanda corrobora que, na maioria das vezes, há, sim, amor na construção desses relacionamentos. A dificuldade está justamente na forma de dar vazão ao sentimento. 

A exemplo do comportamento da mãe de Aline, Fernanda acredita que boa parte dos pais e das mães associados à chamada parentalidade tóxica apresenta um comportamento narcisista. “Eles vivem através da vida dos filhos e querem que os filhos satisfaçam todas as suas necessidades. Essa relação pode ser, por exemplo, pautada pela competição, pela negligência e pela agressividade. Em todos os casos, esse pai ou essa mãe sempre vai se colocar em um patamar muito superior e vai demonstrar dificuldade em ver o filho se desenvolvendo e crescendo, sendo protagonista da sua própria história”, expõe a educadora. Ela pondera que o comportamento não vai significar, necessariamente, um diagnóstico para o transtorno de personalidade narcisista. 

“No geral, uma característica comum desses pais tóxicos é o descontrole emocional. Muitas vezes, eles demonstram estar fora do controle e reagem de forma muito exagerada em relação a atitudes dos filhos. Também é comum que apelem para a manipulação e para a chantagem, tentando incutir nas crianças, nos adolescentes ou nos filhos já adultos um sentimento de culpa”, avalia Fernanda. 

Comportamento danoso dos pais pode repercutir na vida adulta de seus filhos 

“Em termos gerais, a parentalidade tóxica acontece por três vias: superproteção, autoritarismo e inclusão dos filhos nos problemas conjugais”, avalia Rodrigo Tavares Mendonça, psicólogo especializado em psicoterapia de família e de casais. Ele pondera que “os pais erram ou são tóxicos esporadicamente, o problema acontece quando comportamentos que causam mal-estar são recorrentes, tornam-se um modo de parentalidade”. 

No caso dos superprotetores e autoritários, “as principais consequências para o pai e a mãe é o possível estabelecimento de um vínculo patológico com os filhos e o hiperfoco dos pais sobre os filhos, que acontece quando eles, por exemplo, esquecem-se de viver como um casal para viverem somente como pais”, sinaliza o psicólogo.  

Para os filhos, as consequências podem ser mais abrangentes. “Filhos superprotegidos costumam ter dificuldade para se submeter aos limites da vida externa, então podem não se adaptar facilmente a contextos diferentes ou pessoas diferentes, refugiando-se na vida interna familiar. Costumam ter muitos medos e ansiedade por não se sentirem preparados para enfrentar o mundo”, sinaliza.  

“Filhos criados em um regime autoritário podem se prender em um conflito de interesses, ou seja, buscar contraditoriamente atender as expectativas dos pais ao mesmo tempo em que tenta encontrar sua própria personalidade, sua liberdade. Podem pensar que são insuficientes, que não foram capazes de agradar aos pais, então desenvolver uma autoestima baixa”, exemplifica o psicólogo, acrescentando que há inúmeras outras consequências. 

Ajuda externa pode ser necessária 

A psicóloga Fernanda Teles acredita que o melhor caminho para identificar, evitar e combater a parentalidade tóxica é o autoconhecimento – algo que pode ser buscado com a ajuda de profissionais da psicoterapia, por exemplo. Ela frisa ser importante que pessoas que se sentiram vítimas desse comportamento na infância também busquem ajuda. Assim poderão evitar reproduzir o comportamento ao constituírem suas próprias relações e, principalmente, podem construir ferramentas para se empoderarem e voltarem a ser protagonistas de suas próprias histórias. 

“Identificar os nossos próprios erros é uma tarefa difícil, geralmente precisamos de ajuda externa”, ratifica o psicólogo Rodrigo Tavares Mendonça. Contudo, ele salienta que os pais podem fazer um exercício íntimo de reconhecimento do problema ao se perguntarem do que eles têm medo com relação aos filhos e, a partir da resposta, avaliar se a relação que estão construindo está pautada por esse sentimento, tornando-se disfuncional. 

“Quando o medo é uma emoção que guia o comportamento dos pais, temos um problema. Se os pais têm medo de os filhos se frustrarem ou sofrerem por não terem acesso às coisas é um sinal de uma possível superproteção. Se o medo é o de os filhos se tornarem uma pessoa que eles não gostariam é um sinal de um possível autoritarismo”, descreve. Além disso, os pais precisam observar o nível de envolvimento dos filhos nos seus conflitos conjugais. “Eu tenho uma paciente com graves sintomas de ansiedade cuja mãe ia dormir no seu quarto toda vez que brigava com seu marido. Isso não pode acontecer. O ideal é que os pais nem conversem com os filhos sobre seus problemas no casamento, que resolvam os dois sozinhos ou em terapia. Os filhos têm de se preocupar com o próprio futuro, e não ficar com medo por causa dos problemas dos pais”, assevera. 

No caso dos filhos, a tarefa de evitar os comportamentos tóxicos dos pais é um pouco mais difícil, especialmente se forem crianças ou adolescentes. Mesmo assim, algumas estratégias podem ser mostrar eficientes. Quando há sinais de parentalidade superprotetora, “os filhos podem buscar desenvolver a sua própria independência, como cuidar do próprio quarto e não fazer exigências aos pais, evitando de serem cuidados o tempo todo e mostrando que não precisam dessa proteção”, aponta o psicólogo. Já na relação com pais autoritários, “os filhos podem evitar a revolta, que os levaria a serem o exato oposto do que os pais querem. Isso não é alcançar a liberdade”, pontua. Mendonça é enfático ao aconselhar que os filhos não se envolvam nos conflitos dos pais – “que têm de resolver seus conflitos sozinhos ou buscarem ajuda, porque o envolvimento dos filhos não resolve o problema, apenas cria outros”.