“Eu sempre me vi e me entendi como uma mulher, mas só comecei a falar sobre a minha própria identidade aos 20 anos. Mais do que medo das reações, o que me impedia de enfrentar todos o preconceito social era a culpa. Eu sentia culpa por ser quem eu sou, como se estivesse errada, como se estivesse fazendo uma escolha errada – quando, na verdade, nunca foi uma escolha. Mais do que o peso do julgamento dos outros, eu sentia o pesar de saber que, ao me realizar como ser humano, iria causar sofrimento à minha mãe e ao meu pai. Era como se ser quem eu sou fosse também uma atitude egoísta, e isso me deixava cheia de remorso”. 

O desabafo, em um fôlego só, é da cabeleireira Yasmim Chaves, 31, que, falando da perspectiva de uma jovem transexual, traz em seu relato um sentimento que é comum e particular a outras tantas pessoas LGBTQIA+: o da culpa de ser quem se é. Emoção que também está presente na história da publicitária e ativista Angel Jackson, 27. “Durante meu processo de me entender enquanto uma mulher pansexual, essa autoculpabilização me rodeou por vários momentos, sobretudo por ter crescido em um ambiente onde a heteronormatividade compulsória se fez muito presente”, sinaliza. 

Notavelmente, o fato de Yasmim e Angel falarem sobre a culpa que sentiam a partir do olhar do outro diz muito sobre como essa sensação se constitui entre pessoas LGBTQIA+. “É importante observar que, nesses casos, não estamos falando de um remorso legitimamente daquela pessoa. Não é que ela fez algo reprovável e está arrependida. Na verdade, estamos falando de algo que vem de fora para dentro”, analisa a psicóloga Letícia Ciscouto, preceptora de estágio em psicologia do Uni-BH. 

“Sabemos que cada indivíduo carrega em si uma história, mas, ao mesmo tempo, sabemos que atrás de cada um de nós há um coletivo e suas normas. Nesse contexto, a pessoa que se percebe transgredindo a normatividade tende a se sentir angustiada, como se ela fosse errada, como se o desejo dela fosse errado”, reflete. 

Na mesma linha, o psicanalista Hugo Bento, que é mestre em psicologia e desenvolve pesquisa na área de gênero e sexualidade, reforça como o contexto histórico e sociocultural implica uma autopercepção distorcida das pessoas LGBTQIA+. “Pensar na especificidade de como o sentimento de culpa incide sobre esse grupo social nos coloca frente a uma reflexão ampla. Não há como ignorar que ainda vigora uma noção da homossexualidade, da bissexualidade e da transgeneridade como algo pecaminoso, doentio e, em alguns países, criminoso”, reflete.  

Bento acrescenta que, como o nosso psiquismo não é constituído sem uma influência direta dos discursos sociais em que estamos inseridos, a crença de que certos desejos eróticos e identidades de gênero seriam abjetas e indesejáveis acabam sendo introjetadas inclusive por sujeitos LBTQIA+. “E aí tem um engodo, pois algumas pessoas, ao se depararem com esse sentimento (de inadequação), vão pensar que o caminho é reverter esse comportamento de maneira que a experiência seja adequada à norma social”, comenta, em referência à chamada terapia de “reorientação sexual”, também conhecida como “cura gay”.  

“Nós, da psicanálise, somos radicalmente contra esse tipo de conduta. Afinal, é muito violento fazer com que alguém abra mão de seus desejos e de sua identidade para se conformar a uma lógica normalizante quando, na verdade, sabemos que a origem desse sofrimento são os discursos sociais preconceituosos – e não a orientação sexual ou a identidade de gênero em si”, avalia. 

Silenciamento 

O psicólogo Samuel Silva examina que, por trás da imputação de culpa, há um perverso sistema que, não raro, leva ao adoecimento mental. “A construção da subjetividade LGBTQIA+ é atravessada por essa emoção”, diz, inteirando que “parte significativa desse fenômeno surge do conflito entre quem somos como pessoa e as expectativas geradas a partir de como se espera que sejamos”. “Família, escola e religião, por exemplo, são espaços de socialização e construção de identidade que normatizam como pessoas devem ser, e quem foge a essa norma é apontado como errado e inferior e, portanto, necessita de reajuste”, esmiúça. 

Ocorre que as maneiras encontradas para esse “reajuste” estão sempre ligadas à violência e ao silenciamento, e aqui a culpa aparece como forte aliada. “Fazer a pessoa LGBTQIA+ sentir-se culpada por ser quem ela é, na verdade, é uma tentativa de controle e enquadro ao padrão normativo. Contudo, o que a culpa faz é apenas nos adoecer. A partir dessa culpa imputada, muitos passam a se ver como menos humanos, questionam a sua dignidade e acreditam existir uma obrigação de compensar o fato de serem quem são para serem aceitos”, expõe. 

“Tudo isso leva a processos de fragilização da autoestima, intensificação de comportamentos depressivos e aumento dos níveis de ansiedade”, pontua Silva. Processo esse que é flagrante na história de Yasmim Chaves. Ela relata que, por anos, acreditou que poderia apagar sua própria identidade. Assim, evitaria frustrar as expectativas de pessoas queridas. Afinal, acreditava que ela era a única responsável por se sentir angustiada. Mas, a certa altura, tanto silenciamento tornou-se insustentável. “Eu me vi entre a cruz e a espada. Ou eu continuava vivendo uma vida que não era a minha ou enfrentava o preconceito e o que viria pela frente”, relata.

Autoestima comprometida. Também um efeito associado ao sentimento de culpa imputada a LGBTQIA+, é comum o relato de uma autoimagem comprometida. “A gente não desenvolve a visão que temos de nós mesmos se não tivermos um parâmetro. Para a constituição do eu, não dá para fugir do olhar do outro e de alguma comparação ou identificação. Se se tem uma aproximação contínua de pessoas que desejam o que eu desejo como pessoas ruins, criminosas, pecaminosas e adoentadas, consequentemente, estarei olhando para mim mesmo a partir desse olhar. Por isso, insistimos tanto que referências positivas de pessoas que não são heterossexuais ou cisgênero sejam apresentadas, porque algum modelo pode ser construído”, analisa Bento.

No caso de pessoas transexuais, há um componente a mais a impactar a autoestima. “É esperado de nós um certo padrão de beleza que é muito complicado. É esperado que tenhamos passabilidade para que sejamos consideradas bonitas. E, se não chegarmos lá, a culpa é nossa”, comenta Yasmim.

Mencionada por ela, a passabilidade refere-se à percepção ou reconhecimento da pessoa como pertencente à identidade de gênero com a qual ela se designa, e não ao sexo ou gênero com o qual foram designado ao nascer. O conceito, ao reforçar estereótipos, é considerado equivocado por militantes travestis e transgêneres. 

Alívio e apoio 

“Os efeitos mortíferos desses discursos culpabilizantes são colhidos nas clínicas cotidianamente”, reforça Hugo Bento, citando que o desdobramento mais extremo do fenômeno é o autoextermínio. Para o psicanalista, da mesma forma como o contexto social leva ao adoecimento, é uma percepção mais detida sobre as dinâmicas das relações em sociedade pode significar um primeiro passo para a superação desse sentimento.  

“A relativização da norma e uma certa crítica acerca dos discursos sociais, que são efeito de um olhar para a própria história de vida, são ferramentas para lidar com essa culpa. Percebo, no cotidiano clínico, que alguns pacientes vão falar sobre pessoas que tinham discursos moralizantes, mas não conseguiam sustentar essa moralidade toda. Então, alguma coisa sobre questionar a força da norma começa a operar na vida do sujeito. Começa-se a compreender que os ideais moralizantes aparecem de forma tão severa que não tem corpo nesse mundo que se adéque. E essa compreensão produz alívio”, detalha. 

“Outra ferramenta poderosa (para o enfrentamento de uma realidade hostil à livre expressão da sexualidade) é a compreensão de si mesma como pessoa digna de respeito e detentora de direitos. Ser LGBTQIA+ não implica desvio nem doença, logo não deve existir culpa por ser assim. A diversidade de perspectivas de mundo deve ser protegida e garantida para que cada pessoa possa construir sua identidade sem culpa, entendo que ela, a partir das suas experiências, descobrirá os melhores caminhos para ser quem de fato deseja ser”, acrescenta Samuel Silva. 

Rede de apoio. O psicólogo acrescenta que, sem dúvidas, ter uma rede de apoio é também algo importante. “Mas não basta ser família ou pessoas amigas, é necessário que sejam pessoas que além de relações de afeto com a pessoas LGBTQIA+ tenham uma visão não preconceituosa e de fato aceitem a pessoas como ela é”, informa. 

O apoio, inclusive no ambiente familiar, foi fundamental para Angel Jackson. “Eu tenho uma família que é um tanto quanto fora da curva nesse sentido, até falo que tenho o privilégio porque muitas pessoas passaram e passam por situações muito duras em seus lares por serem quem são”, comenta, lembrando que, após uma conversa com seu avô, viu a sensação de constrição se diluir pouco a pouco.  

No caso de Yasmim Chaves, a expectativa de apoio era tão baixa que, mesmo diante do que ela considera um “acolhimento tímido”, ela se mostra grata. “Eu já entendi, nesses mais de dez anos, que muitos nunca vão me ver verdadeiramente como mulher. Mas, em comparação à maioria das meninas, eu tive um grande apoio. Há três anos voltei para a casa dos meus pais, depois de terminar uma relação. Sinto que eles me respeitam, mas não sei se me aceitam”, reflete. 

Mães pela liberdade. Na luta para que mais famílias se abram e acolham seus filhos, Myriam Sallum coordena o coletivo mineiro “Mães Pela Liberdade”. “Nós funcionamos em várias frentes, como comunicação, direitos humanos, políticas públicas, formação. Mas o que bate no coração do ‘Mães’, o que nos impulsiona, é o acolhimento. Porque é o motivo de nós existirmos: libertar pais e mães dessa prisão social chamada preconceito, intolerância e que traz à tona o pior de um ser humano”, diz.