Quando Olorum ordenou que Oxalá criasse o ser humano, várias foram as tentativas do orixá. Com o ferro, ficou rígido demais. Usou a pedra, mas, ficou frio. A água não tomava forma. Tentou o fogo, e logo a criatura se consumiu em suas chamas. Foi quando Nanã Buruku veio em seu socorro: ofereceu-lhe a lama. Então, Oxalá moldou as formas humanas, e com um sopro, Olorum emprestou vida ao homem, que com a ajuda dos orixás, povoou o mundo. Mas o corpo precisa sempre voltar à terra. Nanã, afinal, deu a matéria no início, mas a quer de volta ao final.
É assim, pela narrativa da origem do mundo, extraída do livro “Mitologia dos Orixás” (2001), do sociólogo Reginaldo Prandi, que Magna Oliveira inicia as aulas do projeto “Iranti: Ser África”, iniciativa que, desde 2015, busca formar professores em contação de histórias dos povos negros, promovendo literaturas e oralidades africanas e afro-brasileiras. Um reforço no sentido de fazer cumprir a Lei 10.639, de 2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas de níveis fundamental e médio do Brasil.
De um entendimento mais dilatado, o projeto encabeçado por Magna pode ser lido como parte de um movimento maior, que tem ganhado força. Nele, a população negra – que, por efeito da diáspora, hoje comunga de uma identidade transcontinental – passa a recontar seu próprio passado para, assim, transformar o presente e projetar um futuro a partir de uma perspectiva afrocentrada. “Quando estudei, me sentia constrangida com o que a história dizia sobre o meu povo. Era a parte que queria que passasse mais rápido! Mas essa não é a nossa história. Essa é a que os colonizadores escreveram por nós”, explica Magna, que é técnica administrativa.
Valorizando as tradições oral e literária dos povos negros, ela busca furar as sucessivas camadas discursivas elaboradas em contexto colonial – o que faz surtir um efeito antirracista e representa um passo rumo à descolonização do pensamento. “Se, no processo de formação, todas as referências são brancas, o que acontece é que, para me referendar, vou buscar me embranquecer. É essa lógica que nós estamos quebrando”, diz.
“Ainda há resistência em abordar esses temas dentro da escola, porque não se reconhece a importância da história e da cultura negra na formação do país – que, embora racista, não se reconhece como tal”, observa a mestre em educação e professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto Luana Tolentino. Para ela, projetos como o “Iranti: Ser África” possibilitam que “jovens e crianças negras valorizem seu pertencimento racial, construam identidades positivas, se orgulhem de sua ancestralidade – algo que faz bem à autoestima e vai afetar diretamente o processo de aprendizagem”, examina ela, que é estudiosa da aplicação da referida lei federal e diz ser crescente o número de iniciativas do gênero.
Outra perspectiva. Ao divulgar histórias carregadas de significados, Magna junta-se a um movimento pelo qual busca, mais que sentir-se representada, produzir uma completa mudança de perspectiva. Afinal, ao se conhecer outro modo de conceber o mundo, surgem formas novas de oferecer respostas aos seus problemas, por meio de alternativas próprias. É no que acredita a MC Tamara Franklin: “Tanto a ficção quanto a literatura e até as ciências são consumidas de um olhar eurocêntrico. Por isso, muitos de nós passam a reproduzir posturas que não têm nada a ver com a compreensão africana”, diz “Eu boto fé nesse movimento, em que estamos nos reapropriando do que é nosso”, completa a artista.
A história que abre a reportagem é exemplo dessa mudança de eixo. “As religiões e a filosofia africana trazem, em si, outra relação com o meio. A natureza não é vista como outro, mas como parte”, analisa Tamara. Para ela, aliás, a questão vai muito além da representatividade.
“É comum ouvir que precisamos ocupar espaços a qualquer custo. Mas a casa-grande tinha muito preto, nem por isso estava sendo empretecida”, reflete. “O que precisamos é quebrar essa estrutura – e pensar o futuro sob uma ótica preta é uma forma de começar esse processo”.
E, para ela, para construir essa emergente perspectiva, é preciso avançar mais. “O povo negro devia receber condições para estudar a sua própria medicina, seus próprios avanços tecnológicos. Fala-se muito de África para falar de tradição. Precisamos olhar para a frente, para as possibilidades de avanço”, defende a MC. “Acredito que a educação afrocentrada poderia passar por caminhos mais amplos”.
As proposições de Tamara fazem ecoar formulações do pensador senegalês Cheikh Anta Diop (1923-1986), que pôs em evidência as contribuições africanas para a humanidade. O autor reivindicava o vínculo entre o Egito e a África negra e demonstrava como o país egípcio influenciou a Grécia – considerada berço da civilização ocidental – e o mundo clássico como um todo. Em suas publicações, Diop indicava a capacidade de produzir conhecimento e ciência e de se organizarem politicamente, em escala nacional e continental, aspectos que costumam ser desprezados.
Um mito que põe em questão a capacidade da comunidade egípcia de erguer suas pirâmides – façanha creditada até mesmo a seres extraterrestres – funciona como alegoria de como esse conhecimento africano ancestral é silenciado. Outro exemplo de como essa narrativa colonizadora tenta se impor está na maneira de se nomearem as práticas de um povo. “No Brasil, na virada do milênio, falava-se muito em agricultura de subsistência para se referir ao que era feito por povos originários e em quilombos”, examina Wagner Leite Viana, professor na Escola de Belas Artes da UFMG. Hoje, com a sustentabilidade em voga em todo o mundo, “passamos a falar de permacultura, em agricultura biodinâmica”. Dessa maneira, se antes as práticas eram vistas como forma de sobrevivência, agora são consideradas como modelo de tecnologia.
O educador reforça que esse olhar afrocentrado não deve ser compreendido como o oposto do eurocentrismo. “Não é uma oposição, porque de um lado temos uma perspectiva de dominação, que impõe a aniquilação ou a assimilação dos povos dominados, negando a sua capacidade de gerir o seu destino. Do outro lado, temos uma forma de falar de si, sem tomar do outro a sua história”, diferencia.
Autoconhecimento. É a partir das sete direções dos movimentos ensinados na capoeira Angola que Wagner compreende o que é ser afrocentrado. “Para a frente e para trás, para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo e para o centro: há movimentos no mundo, há experiências e há o autoconhecimento”, explana o professor. “Estamos falando disso, construir narrativas a partir de si, sem incorrer em certo egocentrismo, pois falamos a partir de nós mesmos para indicar os aportes que nossas comunidades nos oferecem para sermos quem somos”.
Esse entendimento encontra eco nas falas de Tamara. “Quando falo de autoconhecimento enquanto mulher negra, não posso falar individualmente. Não consigo falar de mim sem falar da minha ancestralidade. É uma construção coletiva”, situa, lembrando que, se há negação dos conhecimentos originários da África, a composição da identidade fica comprometida.
Olhar afroncentrado é múltiplo
As imagens são capturadas em três dimensões e reproduzidas em formato de GIF. Novos quadros vão ganhando a cena, até que um rapaz negro ocupa a centralidade – e uma voz masculina guia o espectador pela narrativa de um amor delicado e fugaz. Assim é o curta-metragem “Looping”, do realizador Maick Hannder. Filmada em Betim neste ano, a produção foi selecionada para um grande festival de cinema.
No filme, é flagrante a opção por uma linguagem que converse com o meio virtual, uma estética contemporânea e futurista. “Looping” é um esforço de Hannder em reimaginar seu passado, mirando outro possível à construção das masculinidades negras. “Eu tenho 24 anos. Há uma década era difícil imaginar um romance assim. Então, é algo que vem muito dessas utopias que eu tinha”, comenta. “Ao mesmo tempo, é uma maneira de dizer do amanhã que eu desejo”, completa, sem deixar de sublinhar tratar-se de uma vontade que parte de uma perspectiva coletiva.
Esse traço cultural da composição das identidades africanas pode ser melhor compreendido com base no axioma que fundamenta a cultura ubuntu: “Eu sou porque nós somos”. É assim, pois, importante situar: embora esse olhar afrocentrado seja compreendido dentro de um mesmo movimento, a forma de se manifestar é múltipla e heterogênea. “Existe uma tendência de estereotipar a produção cultural, artística e estética negra, que acaba se tornando uma barreira para nós”, critica o ator, modelo e performer Pink Molotov.
Ao lado das mulheres trans Darlene Valentim e Marli Ferreira, Pink forma o coletivo independente de produção estética As Talavistas. No ano passado, estreava a performance “Gala”, inspirado na tela “Um Jantar Brasileiro”, do francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) – um dos primeiros retratos da burguesia brasileira. No quadro há um casal branco e uma mulher e dois homens negros escravizados, a servir, e crianças negras ao pé da mesa, recebendo migalhas.
Ao olhar para tal registro, Pink observa que, em muitos espaços, as identidades negras permanecem simbolicamente sequestradas, em cativeiro, por um pensamento colonizador. “A arte é uma narrativa do imaginário, é também através dela que buscamos desconstruir esse lugar que buscam nos colocar”, reforça.
As palavras de Pink remetem à premiada produção “Bluesman”, do rapper baiano Baco Exu do Blues. Vencedor do Gran Prix do Festival Cannes Lions, em cena, no clipe, um homem corre e, enquanto parte da audiência imagina que ele estaria fugindo de algo ou alguém – como é possível verificar pelas reações postas nos comentários –, ao final sabe-se que ele apenas estava atrasado para uma aula de música. Com efeito, essa dubiedade, mesmo que não intencional, desnuda uma estrutura racista do pensamento e retira o homem negro de um lugar simbólico a ele relegado.
A verdade sobre o continente
Ideia que se popularizou midiaticamente desde a estreia do premiado “Pantera Negra”, de 2018, o afrofuturismo é assunto de pesquisa científica da multiartista, pesquisadora e cientista Zaika dos Santos. O conceito, expõe ela, está ligado à arte, ciência, tecnologia e inovação africana e afrodescendente, e diz respeito à experiência real do passado, do presente e do futuro – não se tratando, portanto, de ficção – que parte da prática afrocentrada.
Lembrando que “a ficcionalização de histórias reais negras tem rendido muitos prêmios a pessoas negras”, Zaika é crítica da interferência de pessoas não negras na produção do conhecimento da perspectiva afrocentrada e afrofuturista, “por ser algo que não potencializa nem reproduz um lugar de fala”. A artista propõe uma reflexão: “Por que nenhum pesquisador, artista, cientista ou antropólogo branco conta ou estuda, ou fala sobre o que foi a Eugênia (programa governamental pós-abolicionista de embranquecimento da população brasileira e fortalecimento conceitual e estético da supremacia branca) e sobre o que é o sistema hegemônico, mas quer falar as suas verdades não negras sobre pessoas negras?”, questiona. “É importante dizer que o segundo maior partido nazista, no mundo, foi no Brasil, e ninguém conta essa história”, pontua.
Para a pesquisadora, o afrofuturismo busca “redescobrir a verdade sobre o continente africano”, “entender que a colonização e a escravidão foram o apagamento de parte dessa história, compreender a importância em descolonizar e trazer a aceleração de pessoas negras – de forma a potencializar a equiparação histórica dando perspectivas diversas às novas gerações”, conclui.
Tempo.Sob o entendimento afrofuturista, a construção imaginária de um futuro é distinta daquela presente nas distopias e produções apocalípticas, comuns na indústria do entretenimento.
Trata-se de outra noção de tempo, não linear, em que todas temporalidades são contemporâneas entre si. “Há povos que, hoje, sobrevivem ao fim de seus mundos. Há povos que, no passado, sobreviveram à invasão de criaturas vindas de outra dimensão espacial...”, localiza o educador Wagner Leite Viana. “Então, o afrofuturismo se torna uma resposta às narrativas que têm um entendimento opressor sobre o tempo”, conclui.
Multiartista se dedica ao tema em cinco projetos distintos
A pesquisadora Zaika dos Santos tem se dedicado cientificamente ao afrofuturismo – tema sobre o qual tem se colocado em imersão em pelo menos cinco frentes diferentes.
Uma verdade. “É importante dizer que o afrofuturismo não é uma ficção, é uma realidade. E que alguns autores escrevem sob a perspectiva de ficcionalizar histórias negras”.
Afrofuturismo – Arte e Stem. “Entre os diversos projetos sobre o tema, neste escrevo artigos científicos, faço divulgações científicas, jogos pedagógicos, ministro cursos, oficinas, palestras e produzo eventos conceituais que dialogam com a temática como prática da verdade e também na perspectiva da cibercultura”.
Nok é Nagô. “É um projeto em que trabalho com as multiartes (fotografia, pintura, gravuras, escultura, performance e arte digital) na perspectiva estética da arte africana e afrodescendente no afrofuturismo”.
Saltosoundsystem. “Sou idealizadora da iniciativa que formou 400 mulheres em linguagens da música, da dança e da produção musical, o que se consolidou em um coletivo que reúne quatro mulheres negras e um homem trans negro, engenhando um sistema de som lilás, em formato de salto alto e tocando bass music de mulheres”.
Divulgação científica Afrofuturismo no WOW. Um site que reúne conteúdos de fotografia, texto, vídeo e podcast, sob a perspectiva de mulheres negras sobre tal conceito. Essas mulheres são cientistas, líderes de organizações, pesquisadoras, artistas e produtoras culturais. O projeto foi realizado no Museu do Amanhã e no Museu de Arte do Rio, por meio do programa Mulheres na Ciência, do British Council.
Na música. “Meu último lançamento musical, o CD ‘Akofena’, foi concebido em parceria com o produtor cultural e engenheiro de som Dubalizer, na Audiofya Records. Bass music que se relaciona com música afro-brasileira, feminismo negro e afrofuturismo”.