Afastamento

Por razões emocionais, mais filhos têm rompido relação com os pais

Situações de abuso parental e divergências irreconciliáveis em termos de valores costuma estar por trás do fenômeno


Publicado em 20 de abril de 2022 | 03:00
 
 
 
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Um comentário racista em um almoço de domingo foi a gota-d’água para que a empreendedora Tatiana*, 31, optasse por se afastar de parte do seu núcleo familiar. “Eu sou casada com um homem negro e tenho uma filha negra. Não seria correto expor eles a conviver com uma pessoa preconceituosa só porque essa pessoa é o meu genitor”, critica, admitindo que outras questões já vinham fragilizando os laços entre ela e o pai. “Ele é muito religioso e muito rígido. Não lida bem com certas escolhas minhas, como usar o cabelo curto e ter tatuagens. Ao mesmo tempo que agia de forma moralista dentro de casa, descobri, na adolescência, que ele traía minha mãe. Desde então a nossa história passou a ser de muitos conflitos e desentendimentos. E o que já não era bom se tornou insustentável depois do nascimento da minha filha, hoje com 8 anos”, comenta.  

Foi no contexto de um vínculo que se deteriorava progressivamente há anos que, em 2019, Tatiana decidiu bloquear o pai dela nas redes sociais e evitar o contato com ele em reuniões familiares. “Confrontei o meu genitor depois de ouvir o comentário racista, feito na frente do meu marido e da minha filha. E quando disse que não iria admitir aquele tipo de situação, ele revidou com um discurso sobre autoridade, e o que poderia ter sido uma conversa virou uma briga generalizada. Então, entendi que manter relações com ele só me desgastaria mais e mais. Ainda voltei a falar com ele outra vez, por telefone, quando expliquei meus motivos. Depois, nunca mais nos falamos”, conta. 

Embora não existam pesquisas quantitativas específicas sobre a recorrência de histórias como a de Tatiana – em que filhos adultos optam pelo rompimento intrafamiliar por acreditarem que, ao se afastarem de seus pais, estarão preservando a própria saúde mental –, esse fenômeno parece ser cada vez mais habitual em países ocidentais. Aliás, um acontecimento tão comum a ponto de já haver um termo especificamente utilizado para descrever esse tipo de experiência. Trata-se da expressão inglesa “estrangement”, que pode ser traduzida como “distanciamento” e que é empregada para, genericamente, dizer sobre situações em que uma pessoa se separa ou passa a evitar o seu grupo social e para, especificamente, dizer sobre indivíduos que, a fim de conseguirem se manter emocionalmente estáveis, cortam comunicação com um ou mais parentes. 

O fenômeno foi esmiuçado por Karl Andrew Pillemer no livro “Fault Lines: Fractured Families and How to Mend Them” (“Falhas tectônicas: famílias fragmentadas e como reuni-las", em português). Para a publicação, o professor de desenvolvimento humano da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, realizou uma pesquisa em que concluiu que mais de um a cada quatro norte-americanos relata ter se distanciado de algum parente. Segundo reportagem da BBC, empresa estatal de mídia do Reino Unido, um estudo similar foi realizado pela Stand Alone, organização britânica dedicada ao distanciamento familiar, que chegou a conclusões semelhantes às de Pillemer. De acordo com o levantamento, o fenômeno atinge uma a cada cinco famílias naquele território. O artigo ainda informa que estudiosos e terapeutas na Austrália e no Canadá também afirmam observar uma “epidemia silenciosa” de rompimentos familiares. 

Aparentemente, o estrangement também vem se tornando mais comum no Brasil – apesar de existir no país a cultura de os filhos adiarem a saída da casa de seus pais, mesmo possuindo renda própria. “Além de essa permanência estendida ter raiz cultural, ela potencialmente reflete um contexto social no qual a independência emocional e financeira leva mais tempo para ser consolidada. Mas, mesmo diante desses fatores, observam-se pessoas enfrentando os desconfortos, os desafios e as dores de sair da casa dos pais antes de estarem plenamente prontas. E essas pessoas fazem isso cientes de que essa atitude promoverá mais saúde mental – ainda que não seja um caminho fácil e seguro”, analisa o psicólogo clínico Samuel Silva, acrescentando que o assunto foi levantado por dois pacientes dele em sessões psicoterápicas realizadas na última segunda-feira. 

Motivações 

“Geralmente visões de mundo conflitantes e a impossibilidade de diálogo e respeito entre as pessoas que as compartilham motivam esse isolamento opcional”, observa Samuel Silva, ponderando que, necessariamente, não é um problema que os entes familiares pensem diferente. “O problema é a imposição autoritária dessas perspectivas, pois gera violências e impede a construção de uma identidade própria”, pontua.  

O psicólogo acredita que o conceito de distanciamento emocional também pode ajudar a entender como esse processo se dá. “Pessoas que identificam que suas famílias são espaços de exclusão e violência podem iniciar um processo subjetivo de se desligarem emocionalmente dessas pessoas para não sofrerem tanto quando chegar o momento de, efetivamente, romper esse vínculo. Acaba funcionando como um mecanismo psicológico de defesa”, completa. 

Outra razão que recorrentemente leva ao estrangement é a ocorrência de abusos emocionais, verbais, físicos ou sexuais cometidos pelo pai ou pela mãe. Segundo o pesquisador Karl Andrew Pillemer, o divórcio é outro fator de influência frequente quando o filho, já adulto, é levado a escolher um lado ou passa a lidar com disputas – sejam elas financeiras ou afetivas.  

O doutor em psicologia social Cláudio Paixão Anastácio de Paula acrescenta que as diferenças de valores culturais, políticos e religiosos também parecem contribuir de maneira significativa para os distanciamentos – sobretudo no contexto do aumento da polarização e do recrudescimento do conservadorismo observado nos últimos anos. “Observo que há um esforço no sentido de evitar esses distanciamentos em termos de estratégias, como deliberar que certos temas delicados não deverão ser tocados. Porém, noto que, em muitos lares, essas alternativas não têm sido muito bem-sucedidas”, comenta. 

Repensando a família 

Para além das motivações imediatas, há também transformações sociais mais amplas que podem estar por trás desse fenômeno. Caso da construção de uma compreensão menos romantizada do que é ser família. 

“A crença de que a família, independentemente de qualquer coisa, é espaço de amor e acolhimento é extremamente tóxica e está sendo desconstruída. É a partir dessa crença que muitas pessoas acabam se submetendo a relações familiares abusivas e sentem-se culpadas por pensar em questionar ou cortar esses vínculos. Não é por estar em uma relação familiar que o amor e o respeito estão garantidos, porque esses atributos precisam ser construídos e vividos nas ações cotidianas”, avalia o psicólogo Samuel Silva. 

No bojo de debates sobre a romantização das relações intrafamiliares, há também correntes que propõem uma ampliação do conceito de família. Uma linha de pensamento à qual Silva se filia. 

“Há algum tempo, uma cliente de terapia disse que parente não é família. E eu concordo. O laço sanguíneo e/ou de responsabilidade não necessariamente configura uma relação familiar saudável. Para ser família, é preciso que exista respeito, cuidado, compartilhamento, afeto, apoio, crescimento... Eu gosto de pensar que lar é onde a gente é feliz. Família, então, é quem consegue ser lar. Não é sobre sangue, é sobre importar-se. Pessoas LGBTQIAP+, por exemplo, muitas vezes sofrem exclusão por parte das suas famílias de origem e encontram lar em outras pessoas. Aquela ideia que nossas amizades são a família que nós escolhemos é uma grande verdade e um ótimo caminho para o nosso bem-estar”, sinaliza. 

Ônus e bônus. Silva acredita que uma vantagem significativa desse processo é o exercício da autonomia e do autoamor. “Distanciar-se daquilo que nos adoece é uma atitude emancipatória e corajosa rumo a uma boa saúde mental”, sugere. Contudo, ele reconhece que a experiência do estrangement não é sem consequências. “Talvez o maior prejuízo seja sentir não pertencimento. A pessoa pode sentir que suas origens não existem mais e vivenciar um vazio existencial. Nesse caso é bom lembrar: de onde viemos importa, mas mais importante ainda é o que estamos construindo a partir dessa nossa origem e os caminhos que podemos trilhar a partir daqui”, conclui. 

Na própria pele 

As considerações do psicólogo Samuel Silva, especializado no atendimento ao público LGBTQIAP+, dialogam com a vivência do enfermeiro Marcos*, 24. “Decidi me afastar do meu pai quando percebi que não havia respeito entre nós e que comentários dele eram tóxicos para mim. Apesar de sermos família, entendo que, se uma pessoa não consegue me respeitar e respeitar o meu espaço, tenho que colocar um limite”, relata. “O que motivou que eu optasse pelo distanciamento foi o fato de meu pai não me oferecer suporte emocional além de ter atitudes de preconceito e de discriminação, que foram grandes embates entre nós”, diz.  

“Levei esses assuntos para a terapia e tentei me aproximar dele de diversas formas, mas sinto que ele deveria também ir para a terapia, mas não vai por preconceito. Nenhuma das abordagens que elaborei com a minha psicóloga funcionou, então me afastei para me preservar”, situa o enfermeiro. Mais recentemente, ele voltou a tentar se aproximar do genitor, oferecendo a ele a oportunidade de acompanhar mais de perto a sua vida. “Em janeiro, decidi me abrir para ele e apresentar a ele a pessoa que eu amo, mas ele disse que não estava pronto e que preferia não saber da minha vida amorosa, que preferia não conhecer o meu namorado”, lamenta. 

Embora julgue que o estrangement tenha sido benéfico para a própria saúde mental, Marcos sublinha que, para ele, ainda é penoso sustentar essa decisão. “É ruim ‘não ter um pai’. Gostaria de dividir com ele meu dia a dia, angústias e felicidades, como faço com minha mãe. Mas só de pensar na grosseria e no peso do julgamento dele, me afasto”, diz.

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